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dos seus contos e apologos, e foi pela irradiação do Buddhismo que um grande numero de Contos transmigraram para o Occidente e até para o Christianismo.

A descoberta do Conto dos dois Irmãos no papyrus hieratico d'Orbygny, vem explicar de um modo plausivel a passagem dos mythos kuschitas para a fórma litteraria de novella, redigida sobre a lenda elaborada pelo povo. Lenormant estabelece a transição dos mythos extranhos ao Egypto para essa narrativa dos passatempos da XIX dynastia, principalmente do joven principe que veiu a ser Seti II. Diz Lenormant, fallando do scriba egypcio: «Fez como o nosso Perrault; deu uma fórma fixa e litteraria a um conto popular, e este conto, como a maior parte dos outros entre todos os povos, não era senão um mytho degenerado, despido do seu caracter religioso.»[1] Como estrangeiros ao Egypto esses mythos foram tratados sem respeito, com a espontaneidade popular da transmissão legendaria; a epoca em que se determina a entrada de elementos cultuaes estrangeiros no Egypto é na XVIII dynastia, e esses mythos eram phrygios como o de Atys, phenicios e syrios como o de Adonis, ou gregos como o de Zagreus. Conclue Lenormant, do confronto da acção do conto com os dados d’estes mythos similhantes: «São estes trez mythos famosos, e particularmente o de Atys, de que o romance dos Dois Irmãos reproduz todos os dados fundamentaes, e em certos casos até nos detalhes minimos e mais caracteristicos.» A traição de uma mulher desattendida, thema das lendas da vingança da mulher de Putiphar contra José, e de Phedra contra Hyppolito, é a base do conto passado entre os dois irmãos Anpu e Batu, o seduzido pela cunhada. Estes odios feminis apparecem no mytho de Atys, por não ter accedido aos desejos de Cybele; como o joven deus phrygio Batu tambem se emascula, circumstancia a que allude

  1. Prémières Civilisations, t. I, p. 377.