Página:Contos Tradicionaes do Povo Portuguez.pdf/373

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E isto dizia tão menencoria e pelejando, que o marido não tinha mesa nem cama sem arroido. E assi fez tanto, que por ter paz o marido citou a seu irmão, pedindo-lhe as casas que lhe dera; e processado o feito, que correndo seus termos ordinarios sahiu por sentença a doação por boa. E assi foi a propriedade julgada ao pobre; porém, a mulher do rico mal contente, fez agravar da sentença e seguir o feito até mór alçada, e assi foi á Supplicação, que então estava na cidade de Evora. E partindo de Lisboa, o rico ia a cavallo e com grande cevadeira, e o pobre a pé com dous pães e quatro cebollas no capello; e assi caminharam pera aver final sentença. Indo assi caminhando pera Evora, foram pousar huma noite na Landeyra em casa de um vendeiro, que avia dezoito annos que era casado e nunca tivera filho nem filha; e estava rico e contente, porque a este tempo tinha a mulher prenhe, quasi em dias de parir. E por ser muito conhecido do rico o agasalhou e poz grande mesa, dando-lhe de ceiar o melhor que elle pôde e tinha; assi se pozeram a ceiar com grande festa, fazendo assentar á mesa a mulher do vendeiro pera que como prenhe tornasse de cada cousa um bocado. E o pobre homem, sem dizer que era irmão do rico, se assentou derredor do lume, e poz no borralho a assar uma cebolla para sua ceia, que assada a ceou com seu pão e agua. Esta mulher prenhe ainda que estava á mesa com o marido e hospede, onde tinham bem que cear, e recebiam gosto de lhe dar o que ella pedia por que não perigasse, não lhe pareceu bem nada do que ali avia, nem lhe prestava coisa que comesse, cheirando-lhe a cebolla, que se assava, que morria por ir comer d'ella, e com vergonha do hospede não se erguia da mesa, tomou-lhe tal desmaio que cahiu no chão, e como a criança era já grande a boa mulher com grande trabalho moveu aquella noite antes de muitas horas com muito pesar e dôr do marido, o qual, inquirindo da mulher se desejára alguma cousa, tanto que