Página:Contos Tradicionaes do Povo Portuguez.pdf/375

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elle ter culpa; e porque não acontecessem mais, não quiz pousar n'aquella venda, mas só se poz ao caminho e chegou a Evora a tempo que já lá estavam. E considerando o pobre como avia de parecer com trez demandas diante do Regedor, assentou que era melhor matar-se elle mesmo a si, que vêr-se em poder de seus inimigos, e logo o poz por obra d'esta maneira. Subindo pela escada do muro da cidade, foi acima até chegar ás ameias da torre que está sobre a porta, e deixando-se cahir da torre abaixo para a banda de fóra. Ora, aquella manhã, depois de tanta chuva, tinha amanhecido o dia bom e muito fermoso; um velho que estava entrevado doente e morava ali perto, por gosar o sol d'este dia se fez levar ao soalheiro ao pé do muro, por ali aquecer e ter refrigerio de vêr e fallar com alguns conhecentes que passavam; e assi pouco depois d'elle assentado em uma cadeira, vêdes, vem de cima do muro pelos ares aquelle homem, que desesperado por se vêr com tanta demanda se lançou desejoso de receber a morte, o qual veiu direitamente dar sobre o desditoso velho, morreu, e o pobre homem que desejava morrer não recebeu nenhum damno da queda, que foi toda em cheio sobre o velho. Ao qual logo acudiram dois filhos que tinha, e achando-o morto lançaram mão do matador e preso o levaram ante o Regedor. Porém atravessando com elle pela praça, foi visto do irmão e dos outros dois contrarios, que o estavam aguardando; tomou o irmão a dianteira, e o vendeiro tambem queria dizer seu queixume e o da azemela o mesmo, de maneira que cada um se atravessava por fallar, nam deixando dizer ao outro. Tanta briga tiveram entre si, que o Regedor olhou n'isso e logo n'aquelle instante propoz em si, que se achasse da parte do pobre alguma coisa com que por direito o podesse favorecer, que o faria de boa vontade. E disse:

— Que as pessoas que tinham que dizer contra aquelle homem dissessem um a um, começando primeiro quem