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Vendo-se o fidalgo posto em cêrco, e que ninguem lhe queria dar sapatos sem o dinheiro na mão, mandou ao moço que pedisse um só sapato á prova, e que se lhe contentasse mandaria buscar o outro com o dinheiro de ambos.

— Isso sim, disse o official; um sapato levará você, mas dois não os verá seu amo sem me pôr n'esta banca o dinheiro.

Como o fidalgo teve um nas unhas, mandou o pagem a outro sapateiro com o mesmo recado, e do mesmo modo fiou um sapato d'elle, persuadindo-se que mandaria buscar o outro com o dinheiro, ou lh'o restituiria não lhe servindo. Vendo-se assim com os dois, calçou-os e foi-se ao paço rir sobre a historia.

(Padre Vieira, Arte de furtar, p. 474.)




184. A MATRONA DE EPHESO

Em Efezo havia huma matrona honestissima que, morrendo-lhe seu marido, fez por elle os mayores extremos de dôr que se podem considerar; e não se contentando com as ceremonias communs das outras viuvas, se foy á sepultura de seu marido (que antigamente se enterravam nos adros das Igrejas) e ali estava a chorar, sem querer comer, nem afastar-se d'aquelle logar. Aconteceu terem ali perto enforcado a huns facinorosos, para guarda dos quaes deixára a Justiça alguns soldados. Soube hum d'estes que estava junto da sepultura aquella matrona, e compadecido da sua magoa, lhe levou da sua cêa, e a obrigou a que comesse, por não morrer desesperada. Passou adiante, porque o mesmo que a convenceo a que comesse, a persuadiu tambem a que lhe desse seu corpo, com a qual cousa descuidando-se da sua obri-