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uma grande quantidade de mythos; exemplifica com a lenda de Dido, que toma posse do terreno abrangido pela pelle de um boi, a qual ella cortou em tiras tenuissimas. Esse terreno chama-se byrsa, que em syriaco significa a fortaleza; iuterpretado este nome por uma lingua estranha, byrsa em grego significa o couro; d’aqui a invenção da lenda da acquisíção do terreno de Carthago.[1] Nos contos populares é frequente a intervenção do peixe com o poder protector, dos gigantes poderosos como Sansão, e dos diluvios e serpentes de sete cabeças, como nos mythos babylonicos que se transformaram na civilisação dos semitas. Husson, no seu livro sobre o Encadeamento das Tradições, indicou a necessidade de alargar as investigações além das antigas migrações áricas e das infiltrações indianas de epocas posteriores «procurando-as com certa reserva entre as raças chamiticas, e porventura tambem entre as raças turanianas[2]

A ideia mythica fundamental da comparação e analogia dos phenomenos da natureza com a vida do homem, apparece com intuito theologico nos primeiros seculos do christianismo. Minutius Felix exclama: «Vêde como a natureza inteira para nos consolar, parece occupar-se da ressurreição futura, e produz diante de nós as imagens d’ella. O sol põe-se e levanta-se, os astros fogem e tornam, as flôres morrem e renascem, as arvores envelhecem e revestem-se de folhas novas, as sementes corrompem-se para reviverem. Tambem o corpo no tumulo, como a arvore no inverno, occulta um principio de vida sob uma apparencia enganosa de morte. O corpo tem a sua primavera; é preciso saber esperal-a.» A concepção mythica do homem primitivo vendo os phenomenos physicos através da sua subjectividade, persiste com um novo sentido moral de allegoria theologico-metaphysica.

  1. Hist. gen. des Langues semitiques, p. 125.
  2. La Chaine traditionelle, p. 102.