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Se nos espiritos cultos, através dos dogmas religiosos e das idealisações artisticas se não perdeu o typo mythico, com mais rasão deve elle persistir entre as camadas populares.

Nas locuções vulgares existem elementos dos mythos primitivos, cuja importancia só se nos revela pelo processo comparativo. A Aurora é representada como uma Donzella engulida por um Dragão, ou a Noite, como se observa nos mythos de Andromeda, de Hesione, de Santa Margarida, do qual vem a ser libertadas por um heroe, ou ellas mesmas é que rasgam o ventre do monstro. Tylor, diz que se reconhece no conto do Petit chaperon rouge o mytho do sol crescente e do sol no occaso,[1] isto é, da Aurora matutina e da Aurora vespertina. Na linguagem popular diz-se o romper da Aurora, e de facto o rompimento deriva de uma concepção mythica primitiva; diz Tylor: «Os christãos representavam voluntariamente Hades como um monstro que engulia os homens na morte. Tomemos exemplos pertencentes a diversos periodos: o Evangelho apocrypho de Nicodemus, na narrativa da descida aos Infernos, faz fallar Hades como uma pessoa, queixando-se de dôres no ventre quando o Salvador se prepara para descer e dar a liberdade aos santos retidos prisioneiros desde o começo do mundo. Na Edade media, quando se queria pintar esta libertação, chamava-se-lhe o rasgamento do inferno…»[2] Esta prisão das trevas, ou a noite, é o thema mythico conservado na locução do romper da Aurora, a qual se completa por outro vestigio do mesmo mytho na locução á bocca da Noite. Aqui o sentido preciso é o do começo das trevas, que, como o dragão, ahre a bocca para engulir a donzella; sobre este ponto diz Tylor: «Por toda a parte onde a Noite e Hades se personificam em um mytho, póde esperar-se o encon-

  1. As Civilisações primitivas, t. I, p. 391.
  2. Ibidem, p. 389.