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CONTOS E PHANTASIAS

Nenhuma sentimentalidade falsa no seu olhar azul, meigo e pensativo. Nenhuma ideia errada, nenhuma chiméra juvenil na sua cabecinha d’uma lucidez singular.

Sabia conservar-se na sombra, sem deixar de ser digna; tinha a consciencia da mesquinhez do seu destino, sem ter nunca aprendido a ser humilde.

Pouco fallavam com ella, e no entanto parecia não dar pelo desdem quasi brutal de toda aquella gente que a cercava.

Tinha um modo docil e meio risonho de sentar-se ao piano, e tocava uma noite inteira valsas, contradanças, lanceiros, que outras dançavam, na expansão da sua alegria burgueza.

Nunca lhe perguntavam se estava cançada, nunca lhe davam a menor mostra de interesse ou de sympathia.

Pagavam-lhe integral e generosamente, tinham direito aos serviços correspondentes a essa remuneração.

As suas relações paravam aqui.

Não sabiam se ella tinha uma alma, se essa alma se iria azedando a pouco e pouco ao contacto d’aquella indifferença cruel; não sabiam do seu passado senão que era honesto e puro, nunca pensavam no seu futuro senão vendo-a eternamente curvada ao pezo do mesmo destino ingrato.