Página:Dentro da noite.djvu/260

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- Ao contrário, fez, de novo animado, ao contrário. Tenho entre mim e a vida comum um como véu de talagarça espessa. E tudo quanto na vida se faz, eu sinto pelo cheiro, pelos cheiros, como um "seter" humano, amarrado à corrente da conveniência. É a existência de miragem olfativa, uma existência em que os cheiros visionam ambientes, descrevem as almas dos tipos que me rodeiam, dão-me sensações de cor, porque há odores de todas as cores; de sons, de músicas, porque cada cheiro é como um som diverso e o cheiro da baunilha é bem uma nota abemolada diversa do cheiro do cravo vermelho, esse sustenido de clarim; de gosto, porque os cheiros têm gosto; de excitação, porque todos os sentidos calcados por tamanha acuidade vibram a arcada furiosa de um desejo incompreensível, perpétuo, demoníaco, no meu pobre corpo. Oh! não estejas a olhar para mim assim irônico. Há uma íntima correlação entre as sensações do homem normal, que o faz amar a harmonia das coisas e o faz pensar na Beleza esplendente. Quando ele ama e sente assim, na floração da Arte, que é o arrimo da vida, minhando o seu pensamento sutil e vaga essa misteriosa afinidade entrelaça os sentidos, para que o homem sinta numa curva de anca a música das linhas, na carne de uma espádua o perfume da rosa, no entreabrir de um lábio o sabor dos frutos, na criatura que se desnuda o bruto. Desejo cego, caos das sensações... Quando é como eu, porém vitima de um só sentido, morbidamente