Página:Dentro da noite.djvu/275

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berlinda pôs-se em movimento, desaparecendo pesadamente na rua Uruguaiana.

Fiquei um instante trepidante, nervoso. Mas é um fato que quando as crises de pornéia da multidão agem sobre os nervos dos fracos, esses começam por desejar seguir alguém, seja quem for, com o desejo flutuante, o cio indeciso e como que tocado também de uma curiosidade malsã pelo vício dos outros. O carro desaparecendo causou-me uma vaga tristeza. Como seria agradável o que se fazia dentro, nas suas velhas almofadas! Larguei-me para a Candelária, que me pareceu um teatro tanta era a gente e tanta a luz elétrica, e estava lá roçando-me à turba, quando vi um conhecido. Sai então à pressa, sem lhe dar tempo aos cumprimentos e às fatais perguntas; sai, mergulhei de novo nas ruas mal-iluminadas, em que o luar punha uma suave pulverização de sonho. Iria a S. Bento, que tem um morro, árvores, mais sombras, mais recantos sugestivos, o Arsenal pegado e a vista do mar - o pai de todos os grandes vícios incomensuráveis...

Quando, porém, ia chegando ao Arsenal, lá dei com o carro outra vez, vasto como um quarto, com o cocheiro impassível e os estores vermelhos. A sombra cobria a calçada; no céu andava a Lua num estendal de ouro-pálido. Que esquisito peregrinar! que estranha peregrinação! Abriguei-me no desvão de uma porta. Passaram-se dez minutos assim, e era impossível apagar a ansiedade dos meus nervos para descobrir o enigma. A berlinda parecia tremer