Página:Dicionário Cândido de Figueiredo (1913, v 1).djvu/19

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de vocábulos ou artigos, imprescindíveis em qualquer inventário da língua nacional.

E, a êste propósito, não será ocioso memorar que muitos diccionaristas conheceram e usaram, no decurso das suas obras, expressões que não registaram no competente lugar do vocabulário, ou porque, redigindo um artigo, não souberam recordar-se dos termos que usaram noutro, ou porque, distribuida a obra por collaboradores diversos, o autor dos artigos relativos á letra A, por exemplo, não conhecia os termos de que se serviria o autor dos artigos da letra Z.

E assim é que, na grande obra de Frei Domingos Vieira, — e só me refiro aos artigos de uma letra, — debalde procuraremos pelagiano, perómelos, phene, patigabiraba, picaveco, plumbear, panarei, etc., etc. E, contudo, o autor ou os seus ampliadores conheceram e empregaram aquelles termos, ao definir marmanjo, albatroz, batrachio, benzina, côco, azerar, calhamaço, etc. No bom Diccionário Contemporâneo, inutilmente procuraremos os vocábulos assexuado, arachnidas, herva, carácias, chenopódias, spermatozoides, camomilla, gorilla, gálleas, parrochiano e parróchia, trachinídeos, decapódeos, escomberoides, avessar, termillionésimo, azaro, lóio, etc.; e contudo o autor ou os autores da obra serviram-se delles, com fundamento ou sem êlle, ao definir abelha, ácaro, alquequenje, ambeta, anserina, antherídea, anthêmis, anthropomorphos, aparinas, aparrochiar-se, aranha, astacites, atum, avessado, avo, azeredo, azulóio, etc., — e só me refiro a vocábulos da letra A.

Em taes casos, é a falta de méthodo, e sobretudo o facto ou a necessidade de muitos collaboradores da mesma obra, o que determina sensíveis lacunas, sem desabono da competência e saber de quem dirige a obra.

E todavia taes casos, embora dignos de nota, não accusam, como é de vêr, as principaes deficiências dos nossos mais estimados diccionários: as deficiências capitaes referem-se á linguagem popular, á linguagem culta, antiga e moderna, á technologia scientífica, etc., e foi especialmente neste campo que eu, durante vinte e dois annos, despendi larga parte dos meus cuidados e trabalho.

 

II

Materiaes da obra


Nado e criado entre as serranias da Beira, nunca achei exaggerado o parecer de Camillo, quando o celebrado escritor chamava ao povo o melhor dos nossos clássicos; e, tendo ao depois residido annos nas provincias do Doiro, do Alentejo e da Extremadura, mais se me arraigou a convicção de que o povo é realmente um grande mestre da língua, embora êlle o seja inconscientemente, e embora mui raramente o hajam consultado diccionaristas, a revêzes preoccupados de prosápias acadêmicas.

Desadorada pelos lexicógraphos, a linguagem popular mereceu-me longos e especiaes cuidados, que reverteram na colheita de mais de seis mil vocábulos e locuções que não andavam nos diccionários, mas que o povo tem guardado religiosamente por essas províncias em fóra.

É muitas vezes incerta a origem ou formação dessas expressões; mas, muitas outras vezes, ali se nos deparam preciosos lusitanismos, apropriadas dicções, e até numerosos termos, que os eruditos têm tido a ingenuidade de capitular de archaísmos!

Poderiam centuplicar-se os exemplos justificativos dêste assêrto, mas poucos bastarão. Nos escritores e manuscritos antigos deparam-se-nos expressões que os eruditos têm relegado para os domínios do archaísmo ou, pelo menos, da linguagem desusada. Taes são: claror, luxar (sujar), grossor, gerecer-se, calleja, almofia, doairo, traguer (trazer), nembro, estrancinhar (usado no Cancioneiro da Vaticana), confita, (na Eufrosina), engaço (ancinho), ceivar, orreta, gocho (nas comédias de Simão Machado), sorça (nas Lendas da Índia), adôrádo, busaranhos, (em Gil Vicente), agra, bramante (por barbante), quartapisa, seto, ril, tenreiro, gaiar, guaiar, legão, cofinho, inorar, etc. E contudo, quem percorrer as nossas províncias, sobretudo quem penetrar nos desviados rincões, donde o caminho de ferro e a concomitante civilização ainda não expungiram tudo que há de usanças e locuções avoengas, ouvirá pronunciar commummente no Algarve claror, luxar (sujar), grossor; na Beira, gerecer-se, calleja, almofia, doairo, traguer (trazer); no Minho nembro, estrancinhar, confita, engaço (ancinho); no Ribatejo, ceivar; em Trás-os-montes, orreta, gocho, sorça, adôrádo, busaranhos; em Aveiro, agra, etc. E, em quási todas as províncias poderá ouvir as dicções antigas incréu, descudar, hétigo; bellos lusitanismos como verguio; e, mormente em Trás-os-montes, puros latinismos, como hedra, por hera. Etc.

Ainda cheguei a tempo para incluir no inventário da língua nacional milhares de verbas, que àmanhan estariam sonegadas por essa insaciável cabeça de casal, que se chama civilização, o que, desculpando-se com os seus intuitos nobilíssimos, procura locupletar-se á custa de tudo e apesar de tudo.

Àmanhan seria tarde; e exceptuando o que Camillo salvou com os seus livros e o que algum devotado folclorista tem recolhido acaso, pouco ficará, entre o povo, da bôa e antiga linguagem portuguesa. Falo por experiência: há trinta annos, ainda aprendi nas aldeias da Beira numerosas fórmas de dizer, de perfeito cunho local e de acentuado sabor português; hoje, parte dellas, não as oiço por lá, e acho-as substituídas ás vezes pela gíria da cidade e pelo neologismo, ora inútil, ora tolíssimo. A locomotiva, ou antes, a locomotora, esfumou aquelles cerros e valles, e a vegetação secular vai cedendo terreno a plantas novas, entanguidas e ephêmeras...

Nem tudo porém se perderá; e, sobretudo se houver devoção para colher