Página:Dicionário Cândido de Figueiredo (1913, v 1).djvu/20

Wikisource, a biblioteca livre

e archivar os numerosos provincianismos, de que, apesar dos meus esforços, não consegui tomar conhecimento e que porventura ainda vão resistindo á foice que os ameaça, a Philologia terá nelles valiosos subsídios para a história crítica da língua, e a língua poderá continuar a ufanar-se da sua excepcional flexibilidade e belleza, e do seu numeroso vocabulário, irrivalizável talvez, se o defrontarmos com o das outras línguas românicas.

 

Na classificação dos provincianismos portugueses, nem sempre pude seguir uma norma absolutamente rigorosa. A um termo, que se ouve pelo menos em Mogadoiro, em Miranda ou em Vinhaes, chamei provincianismo trasmontano, sem que isso signifique que êlle é usado em toda aquella província ou que não é usado fóra della. Uma vez ou outra, — raramente, — designo a localidade, (termo de Alcobaça, termo de Coímbra, etc.), por tôr a probabilidade de que o termo respectivo só ali é usado. Também, quando chamo a um vocábulo provincianismo beirão, quero dizer que êlle é falado, pelo menos, numa das duas Beiras, (Alta e Baixa), ou até só em parte de uma dellas. Da mesma fórma, há provincianismos alentejanos, que não são conhecidos no Alto Alentejo, e outros, que os distritos de Beja e Portalegre não conhecem.

Vá isto á conta de esclarecimento, como de quem, assentando numa classificação que o não satisfaz absolutamente, não achou processo mais simples nem mais próximo da verdade.

 

Mas a linguagem portuguesa não é só a linguagem popular de hoje; é também a linguagem popular antiga, e a linguagem culta, antiga e moderna.

Sôbre a linguagem popular antiga, foram-me excellentes subsídios os autos e comédias de Gil Vicente, António Prestes, Jorge Ferreira, Simão Machado; e para o estudo da nossa linguagem culta de todos os tempos, não foi sem grande assombro que eu achei, ainda inexplorados pelos diccionaristas, não só os cancioneiros e chrónicas dos primeiros tempos da nossa língua, não só Fernão Lopes e Gil Vicente, senão também os monumentos literários de Vieira, Francisco Manuel, Filinto, José Agostinho, Castilho, Latino, Herculano, Camillo, e tantos outros. Só em António Vieira, depararam-se-me mais de quatrocentos vocábulos, que eu nunca vira em diccionários. Em Gil Vicente e Filinto, mais numerosa foi ainda a colheita.

E nada desperdicei do que fui colhendo: archaísmos e neologismos, derivações violentas e até erróneas, termos de significação duvidosa ou obscura, tudo alphabetei e reproduzi, julgando cumprir um dever.

Bem sei que os menos experientes em trabalhos desta natureza hão de acoimar-me de nimiamente tolerante, com respeito a locuções injustificáveis. Mas ao diccionarista não impende o tolerar ou vedar o uso ou abuso de tal ou tal locução: o diccionarista tem, como dever capital, o reproduzir factos e interpretá-los. Se entende que um vocábulo está corrompido ou que é mal formado, se o julga neologismo inútil ou disparatado, consigna o que entende, mas regista o vocábulo.

Os próprios mestres têm extravagâncias, que ao diccionarista não é lícito expungir. Vejam o manti-costumes, o mil-lindo, o mil-gamenho, o mulhermente de Filinto, o lucreciamente de Camillo, etc.

Mas onde a crítica fácil mais convictamente me alvejará é na inscripção, que eu faço, de gallicismos intoleráveis. Não alongarei justificações, afóra o que dito fica sôbre a missão do consciencioso diccionarista; mas apraz-me notar que, embora a francesia e o barbarismo em geral não sejam defeitos vulgares em livros meus, eu nem sempre condemno o estrangeirismo que não pratíco. Por uma consideração: é que nós não sabemos se o gallicismo, hoje intolerável, será àmanhan palavra portuguesa e, como tal, fará parte do thesoiro da língua.

E esta incerteza é confirmada pela história. Raro será o clássico, antigo ou moderno, que não tenha perpetrado gallicismos, passando êstes ao domínio da língua. Basta citar garção, abrevar, minhão (pequeno), mancar (faltar), etc.

Um purista, que vivesse há quatro ou cinco séculos, devia sentir ondas de