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A simples indicação, que eu faço a revêzes, de que um vocábulo é gallicismo, significa que a palavra proveio directamente do francês, o que não implica a sua condemnação em nome da vernaculidade portuguesa; podem arrecear-se della os puristas, mas nada prova que ella não possa consubstanciar-se, ou não venha a consubstanciar-se, no corpo da nossa língua.

Há gallicismos de gallicismos: e, quando êlles se me afiguram inúteis, violentos ou disparatados, inscrevo-lhes ao lado o cave canem do prudente aviso.

Quanto á disposição das várias accepções de cada vocábulo, segui, ás vezes, o processo da Academia Francesa, dando o primeiro lugar á accepção mais vulgar ou conhecida, quando a accepção primitiva é inteiramente obsoleta, e deixando esta para o fecho do artigo. Em regra, porém, e de acôrdo com os mais autorizados lexicógraphos, dou o primeiro lugar á accepção natural ou primitiva, consignando sucessivamente a extensiva e a figurada, quando para um vocábulo há variedade de accepções.

 

IV

A orthographia


A orthographia, que, para os antigos padres-mestres, era uma parte da grammática, está reduzida actualmente a um intricado e curioso problema.

Àparte meia dúzia de eruditos, que tomam o assumpto a sério, a generalidade dos nossos escritores modernos observam a orthographia que lhes ensinaram ou aquella a que se habituaram, preoccupando-se mediocremente com a razão do que escrevem.

Todos os escritores estão convencidos de que orthographam bem e, entretanto, cada qual ortographa de sua maneira. Como descargo de consciência, suppõem praticar a orthographia usual. A orthographia usual reduz-se á orthographia de cada um, o que dá em resultado cem ou duzentas orthographias differentes e quási todas autorizadas.

Officialmente, considera-se modêlo a orthographia do Diário do Govêrno. É verdade que o próprio Govêrno, isto é, os ministros, só a praticam nas columnas da mesma fôlha; cá fóra, praticam o que lhes ensinou o professor de primeiras letras, cuja orthographia já brigava com a do professor da vizinha escola.

O uso dos doutos é outro bordão, que de nada serve porque o uso do douto Garret não é o uso do douto Herculano; o uso dêste não é o de Castilho; o de Castilho não é o de Latino, e assim por deante. Lembremo-nos de que Herculano escreveu outomno e Castilho outono; Camilo graphou filósopho; Garret usava mattar, cinquenta, fummo, entrehabrir, e outras extravagâncias do mesmo gênero.

Êste facto, só o não vê quem fôr cego de vontade.

De maneira que os diccionaristas, julgando que tem igual direito ao dos outros escritores, escrevem geralmente como entendem, condemnando implicitamente todas as fórmas divergentes.

Consequência: lemos glycose e ouro num livro, procuramos êstes termos num diccionário, e não os topâmos porque o diccionarista escreve glucose e oiro. Ou vice-versa.

Ora, o diccionarista não tem o direito de escrever somente como entende. A sua missão não é preconizar systemas, nem fazer reformas, nem manter intolerantes exclusivismos. Àparte os termos que êlle só conhece de outiva ou que colheu da linguagem oral, e que tem de reproduzir phoneticamente, se a etymologia, a a derivação, ou a analogia lhe não aconselham outro processo, todos os vocábulos que êlle viu escritos, sob a responsabilidade de um escritor antigo ou moderno ou sob a chancella da prática corrente numa época, tem de os reproduzir taes, quaes os viu; e, se a fórma varía de escritor para escritor ou de época para época, essas