Página:Dicionário Cândido de Figueiredo (1913, v 1).djvu/29

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da sua terra, a Senhora Michaëlis. Folgaria ella de que eu registasse as variantes opostas ao uso das consoantes geminadas: elipse, ela, aquela, nulo...

Muitas registei de facto, mormente aquellas em que a geminação provém convencionalmente da assimilação de uma consoante de prefixo, como ofício, oferecer, aparecer, suceder, acumular, etc.; mas registá-las todas sería duplicar a extensão da obra; e a necessidade dêsse registo fica attenuada desde que se consigne, em nome da sciência e do bom senso, que não é êrro evitar systematicamente a duplicação das consoantes, quando não sejam r e s.

E, depois, a eliminação das consoantes geminadas não me parece dos desideratos mais instantes para a racional simplificação da escrita, visto como, phoneticamente, tanto valem dois ll, dois pp, como um só[1].

 

Pela natureza especial da obra e pela difficuldade, se não desnecessidade, de se fazerem de uma vez todas as convenientes ou necessárias correcções na escrita mais usual, é esta a que o autôr do Novo Diccionário observa geralmente no decurso da sua obra; e a tal ponto reconhece a improficuidade das reformas precipitadas e o afêrro do seu país a rotinas, ainda as mais absurdas, que a pesar seu e contra os ditames da sciência, regista e deixa passar sem indignação muitas fórmas que a Philologia condemna, como geito em vez de jeito, sapato em vez de çapato, sarça em vez de çarça, salameleque em vez de çalameleque, grasnar em vez de graznar, etc., etc.

Sobretudo o ç inicial, embora sensatamente adoptado pelos nossos mestres antigos para os casos em que a sciência o impõe, como nos casos alludidos, não é melhoria que possa vingar já, taes são os calefrios que êlle desperta nos amoucos da rotina inconsciente.

Outras reformas há porém que, baseadas na sciência e na índole da lingua se vão enraizando já, com aprazimento de quantos se interessam pelo lustre da nossa língua. E assim é que, em livros das escolas públicas, em documentos officiaes e sobretudo em revistas e livros, organizados por quem não seja estranho ás noções scientíficas da língua, vemos já ir-se dilatando o uso de escrever, como se deve, português, francês, quís, mês, Luís, atrás, através, país, açucar, muçulmano..., em vez das fórmas explicáveis, mas não justificáveis, musulmano assúcar, paiz, atravez, atraz, Luiz, mez, quiz, francez, portuguez...

Como não escrevo grammática, nem faço aqui um tratado de Philologia, não ampliarei desmedidamente esta palestra, consignando os fundamentos daquellas rigorosas fórmas, aliás tão velhas como o português, em quanto as contrárias se baseiam em costumeiras, as mais velhas das quaes não têm dois séculos e foram determinadas pelo mais absoluto desconhecimento da sciência da linguagem, pela pobreza de notações typográphicas, e pela indolência ou idiosyncrasia de uma nação, que, entre as nações que se dizem cultas, é das raras, que ainda não consideram a accentuação gráphica elemento imprescindível da orthographia.

Taes assumptos estão amplamente tratados noutros livros, e até, embora succintamente, têm merecido especial consideração em livros meus. Neste Diccionário, a correcta escrita de cada vocábulo está implíctamente aconselhada na respectiva indicação etymológica. Porque a etymologia, á parte os casos em que a desconhecemos, a história da língua e a fórma que, em línguas irmans, se dá a vocábulos de fonte commum a outros nossos, são seguros recursos de quem deseja escrever como deve. A simples autoridade de qualquer escritor, ainda o mais eminente, e o râncido argumento do uso, só poderão prevalecer, quando escasseiem aquelles recursos.

  1. Escrevia-se isto em 1899. Annos depois, foi officialmente adoptado um processo orthográphico de simplificação, que aboliu as consoantes geminadas, o y, o k, os grupos ph, th, rh, ch (=k), etc. Nesta nova edição portanto, a par das palavras que, etymologicamente e segundo o uso, tem consoantes geminadas, regista-se a correspondente fórma simplificada.