Página:Dicionário Cândido de Figueiredo (1913, v 1).djvu/31

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daria volumes e não um prefácio, senão também porque, a tal respeito, creio bem que me não farão reparos os que na matéria têm voto preponderante. Conheço-os, e vou com êlles, salvo discrepâncias adiáphoras.

Mas, de relance ao menos, devo tocar alguns pontos orthográphicos, que poderão acaso sêr pretexto de reparos, aínda da parte do leitor sufficientemente esclarecido.

Refiro-me á apparente antinomia entre as graphias fruto e fructífero, mama e mammífero, etc. Não derivam ellas da minha tendência para a possível simplificação orthográphica: aliás, escreveria frutífero, mamífero, etc., e ficaria em paz com minha consciência. Mas, dês que eu subscrevo nesta obra as praxes mais usuaes, tenho de dizer que a graphia simplificada fruto, mama, gota, cana, etc., está justificada e praticada pela quási totalidade dos bons escritores portugueses, visto que todos escrevem agora, atar, matar, pranto, corda, etc., que teriam de escrever chorda, prancto, mactar, aptar, haghora, etc., se observassem a etymología. Quere dizer: quando uma palavra perde o seu carácter erudito e se torna popular ou vulgar, a orthographia etymológica nem pelos mais intransigentes etymologistas é praticada. A difficuldade está em traçar a linha divisória entre as palavras vulgares e as eruditas; mas, pelo menos com aproximação, quási todos poderão reconhecer num vocábulo o cunho erudito ou a feição popular.

E se, em vocábulos que certos escritores escrevem eruditamente, eu prefiro a fórma phonética, é porque disto me dão exemplo os escritores e diccionaristas mais afincados em processos etymológicos. O Diccionário Contemporâneo por exemplo, tão affeiçoado ás etymologias, que usa abhorrecer e outros exaggerados etymologismos, também usa sete, orfão, santo..., e não sancto, órphão ou orpham, septe..., que seriam as fórmas mais concordantes com abhorrecer; e hábeis latinistas escrevem para as escolas, com approvação official, ditongo, escrita, escritura... Ora, mal avisado andaria se, desacatando tão salutares exemplos, fôsse mais etymologista que os etymologistas e desprezasse as práticas, com que êlles se aproximam do meu ideal de simplificação orthográphica.

Dado o exemplo, e estabelecidos louváveis precedentes em favor da orthographia phonética de muitos vocábulos vulgares, procurei dotar o nosso vocabulário com um pouco de uniformidade e coherência, preferindo as graphias junto, distinto, esperto, estender, espremer, contrato, etc., a contracto, expremer, extender, experto, distincto, juncto, etc., hypótheses, em que as irregularidades, incongruências e contradicções dão vulgaríssimas em diccionários nossos.

 

Casos há, em que a fonte latina de palavras nossas exhibe duas fórmas differentes, uma com geminação de consoantes e outra sem essa geminação. Geralmente, o lexicógrapho etymologista prefere a fórma complicada; e assim, vemos nos nossos diccionários sollicitar, porque o latim tem sollicitare. Mas o latim também tem solicitare; e como, entre duas fórmas, a lógica e o bom senso me ordenam que prefira a mais simples, explicado fica porque o Nôvo Diccionário prefere solicitar.

Esta explicação abrange muitos outros casos análogos e revelará que me esforcei por levar um pouco de ordem e coherência á nossa chaótica e maltratada orthographia.

 

De acôrdo com a índole e tradições da nossa língua e com os ensinamentos dos bons mestres, nomeadamente Castilho, dei a vários estrangeirismos indispensáveis uma fórma genuinamente portuguesa, substituindo o cotillon, o wagon, o pret, o bonet, pelo portuguesíssimo boné, pelo simples pré, vagão, cotilhão... Não é novidade que mereça prêmio, mas é suscitar, mais uma vez, a necessidade e o dever de não darmos levianamente direitos de cidade àquillo que despreze e não use o legítimo traje nacional.

 

Já agora, não farei ponto neste capítulo, sem uma ligeira referência ás terminações verbaes ão e am, e ao suffixo verbal izar.

Aquellas terminações têm variado de fórma no decurso dos tempos; e a Philologia acha-as ambas legítimas, sejam ellas oxýtonas ou paroxýtonas. E, assim, eruditos philólogos escrevem o pretérito louvárão e o futuro louvarão, em quanto outros orthographam louváram e louvarám.

Ao mesmo tempo, o uso mais generalizado apresenta-nos o pretérito louvaram e o futuro louvarão; e, visto que as duas terminações são igualmente legítimas, visto que adopção exclusiva de uma importa dispêndio de accentos num país que tão avesso lhes é, e visto parecer-me útil que a terminação ão pertença em regra ás palavras oxýtonas e a fórmas monosyllábicas, (dão, são, tão), acceito e pratíco o alludido uso, hoje generalizado, de se escrever o pretérito louvaram, o futuro louvarão, o presente dão e são.

A Philologia não soffre com êste uso, e lucra-se alguma coisa, creio, em simplicidade e em coherência.

 

Quanto ao suffixo verbal izar,