Página:Dicionário Cândido de Figueiredo (1913, v 1).djvu/33

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como paroxýtona, dispense a accentuação gráphica na sýllaba tónica; e com effeito algumas vezes pratiquei o conselho no segundo volume da obra, porque o primeiro já estava impresso, quando se me dirigiu o alludido philólogo.[1]

 

Na moderna technologia scientífica são vulgares aquellas incoherências, abundando as palavras graves ou paroxýtonas, que, rigorosamente, deviam sêr esdrúxulas ou proparoxýtonas: e abundam, mercê principalmente da prosódia francesa, que não conhece esdrúxulos como o português, o castelhano e o italiano. É o que explica a disparatada e vulgar pronúncia de hippodrómo e chrysanthêmo, palavras que, em português, só devem sêr esdrúxulas: hippódromo, chrysântemo; e as variantes prosódicas tacúla e tácula, assécla e ássecla, gôdo e gódo, mêda e méda, labarêda e labaréda, cogumêlo e cogumélo, etc.

O desprêzo do trema tem igualmente produzido interessantes despautérios. Como ai é um ditongo, os diccionaristas viram melaina e mandaram lêr me-lái-na; quando afinal se, quem escreve a palavra lhe pusesse o devido trema, — melaïna, ou a accentuasse, — melaína, os diccionaristas teriam mandado lêr me-la-í-na, e não teriam errado, como erraram.

Na própria modulação das vogaes se reflecte a anarchia, resultante do desprêzo da accentuação gráphica. E, assim, labareda é pronunciada aqui labaréda e alli labarêda; godo, uns o pronunciam gôdo, outros gódo; poia, pronuncia-se na Beira pôia e em Trás-os-Montes póia; o feto, planta, é confundido, na pronúncia, com o feto, embryão, pelos diccionaristas e pelos professores, que nunca ouviram a palavra ao povo e só a conhecem dos livros, — sem accentuação gráphica. Se a tivessem ouvido ao mestre de todos nós, — ao povo, saberiam que feto, planta, é palavra corrente com a pronúncia de fêto. Em todas as províncias se dá àquelle e modulação fechada, e as próprias variantes da palavra confirmam tal modulação: no Minho e nos Açôres, feito; em Trás-os-Montes, fieito, derivação próxima do lat. filictum, e fórma anterior á de fêto. Em parte da Estremadura, é que, talvez por influência dos letrados da capital, algumas vezes se ouvirá féto por fêto. O feito do Minho reflecte-se na toponímia nacional: temos Cancella-dos-Feitos, junto a a Viana; temos Feital, Feiteira, Feitosa, etc.

Nas próprias escolas officiaes, á míngua de accentuação gráphica, ouvi sempre dar a dois conhecidos lagos os nomes de Ladóga e Ónega, quando a sua verdadeira pronúncia é Ládoga e Onéga, tal é a anarchia que tem dominado na orthoépia portuguesa, e que há de embaraçar sempre todos os diccionaristas, a que não falte consciência nem probidade literária.

 

Não obstante o cuidado, com que me ufano de têr procedido, confesso que mais de uma vez me vi enredado na difficuldade de indicar a pronúncia de palavras que nunca ouvi, e que nunca vi accentuadas, mormente ao tratar-se de vocábulos brasílicos. A pronúncia de tuiuiu, por exemplo, ¿como poderia sêr representada por quem nunca a ouviu? Escrita assim, tanto se poderia lêr tui-ui-u, como tu-iu-iu, como tu-i-u-iu... Se os que della usaram a escrevessem como deviam, não haveria dúvidas.

Sobretudo de algumas palavras da África portuguesa é até impossível determinar-lhes a verdadeira pronúncia. Por um capricho, difficilmente explicável, os nossos viajantes e exploradores africanistas lembraram-se de representar por M e por N o som inarticulado, quási nasal, com que os Landins e outras tríbos africanas acompanham a pronúncia de certos termos: m'pacaça, m'baca, n'guvo, etc. O diccionarista português, que queira indicar a pronúncia de taes palavras, não póde, porque não tem sýllabas nem letras que exprimam o alludido som. O racional seria escrever pacaça, baca, guvo, etc. Não sería representação rigorosa, mas

  1. Cf. C. de Figueiredo, Vícios da Linguagem Médica, 1 vol. de 291 pág. Lisboa, 1910.

    (Nota desta nova edição).