Página:Dicionário Cândido de Figueiredo (1913, v 1).djvu/37

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tónica, e talvez êsse facto influísse na prática de alguns meus illustres conterrâneos. Pondere-se, porém, que a accentuação gráphica estrangeira tem escassa analogia com a nossa; e por isso o espanhol escreve marqués, porque o e é a vogal tónica; e os que entre nós escrevem espléndido não se dedignam de escrever marquês, porque o accento agudo, neste caso, desfiguraria o valor da vogal. Desfigurá-lo-ia aqui, como o desfigura em espléndido.

Tenho porém á mão um argumento, que talvez faça hesitar os mais convictos defensores do accento agudo em qualquer vogal tónica, aberta ou fechada, de palavras proparoxýtonas.

Occorrem-me pelo menos duas palavras, que podem abalar taes convicções: neveda e levedo.

São palavras esdrúxulas, como se sabe. Ora, segundo a theoria dos que só querem accento agudo para a vogal tónica da palavra proparoxýtona, deveriam accentuar-se néveda e lévedo; mas, depois de tal accentuação, toda a gente que não conhecesse taes palavras, lê-las-ia erradamente, porque iria lêr né-ve-da, lé-ve-do, quando afinal essas palavras nunca se pronunciaram nem se pronunciam senão nê-ve-da, lê-ve-do, e assim mesmo as accentuou o bom Roquete, no seu Diccion. Port. Franc.. Creio que tinha muita razão o Roquete, que, apesar de tudo, ainda hoje merece lêr-se. E, se êlle tinha razão, tenho-a eu também.

O que deixo dito de nêveda e lêvedo, é applicável a bêbedo, trôpego, nêspera, côdea, côvado, ênclase, êncero, êulopho, êumeno, êumicro, peixôtoa, serôdio, cômoro, devêramos, fêvera, etc.

Fóra da hypóthese dos esdrúxulos de vogal tónica com accentuação fechada, hypóthese em que talvez seja lícita a defesa de duas opiniões distintas, é muito simples a representação prosódica da linguagem portuguesa, sem recorrer a fallíveis e contradictórios expedientes sónicos.

Em regra, nas palavras graves, a vogal tónica é vogal aberta: soldado, donzella, escola... Portanto, accentuam-se as excepções, quando queremos representar o valor das palavras: trombêta, rôla...; ou, se organizamos vocabulário, notamos essas excepções em parênthese, seguidamente ao vocábulo, assim: — Lobo, (), m. — Etc.

É verdade que pâra, câda e sôbre são palavras que se consideram proclíticas, e que, perdendo por tanto o accento próprio, pela sua subordinação a uma palavra immediata, (para nós, cada homem, sobre tudo), não merecem accento gráphico, no conceito de bons mestres; e, tanta consideração estes me merecem, que não devo esquivar-me a significar-lhes o fundamento da minha insignificante divergência.

 

Em primeiro lugar, e sem discutir se pâra deve considerar-se proclítica, porque talvez se possa sustentar que as próclises só se dão nos monosýllabos, (de todos, a história, por Lisbôa), impressiona-me a reflexão de que os leitores, na sua maioria, não são phoneticistas nem se dão ao cuidado de destrinçar próclises e ênclises. De fórma que, devendo o diccionarista representar a modulação excepcional das vogaes tónicas, e não representando o valor da alludida vogal naquellas suppostas proclíticas, o leitor ficaria no direito de lêr pára quando devia lêr pâra, e poderia dizer sóbre quando devia dizer sôbre; e cáda, quando devia dizer câda, etc.; visto que a regra é sêr aberta a vogal tónica da palavra.

Depois, verifica-se um facto, que talvez não seja indifferente á questiúncula: — é que as vogaes e e o das partículas não são fechadas, são surdas, (por Deus; de Roma). Portanto, se sôbre fosse uma proclítica e tivesse de subordinar-se á regra das próclises monosyllábicas, teriamos de lêr subre tudo, o que ninguém acceitaria, é claro.

Mas temos mais. Sôbre nem sempre é palavra dependente de outra. Em náutica designa certas velas: «O vento despedaçou os sôbres». E até em grammática é palavra independente, como quando dizemos: «A palavra sôbre é uma preposição». E isto mesmo se póde dizer de pâra, etc.

E mais ainda: Sem accentuação gráphica, para e sobre podem sêr preposi-