Página:Dom Pedro e dom Miguel.pdf/20

Wikisource, a biblioteca livre
14
DOM PEDRO E DOM MIGUEL

que elle chamava «a dureza, a violencia e o pendor vingativo do seu genio que tão temivel a tornavam»[1].

Teve porem ensejo de verificar, dous mezes e meio depois, na audiencia concedida para apresentação dos pezames pessoaes do Rei Jorge IV, o quanto se enganara. De pé durante mais de duas horas, o que já por si dava mostra de não ser tão precaria sua saude, e sem mostrar o menor indicio de cançaço, ella falou com a volubilidade e com a vivacidade do costume de quanto se relacionava de perto ou de longe com os negocios do reino. Tambem externou sua opinião sobre todos os personagens que n'elles figuravam, e como sabia ser franca como ninguem, Sir William sahiu da entrevista estupefacto, muito embora reconhecendo que ella lhe testemunhara uma benevolencia e uma cortezia inexcediveis. Essa mulher destituida de belleza era capaz e, quando preciso, sabia fazer uso de um grande poder de seducção. Sua loquacidade era inesgotavel e o embaixador escrevia para Londres[2] que lhe seria quasi impossivel repetir tudo quanto ella contou. À conversa ou antes o monologo consistiu «numa serie sem nexo das historias mais disparatadas, repetidas por toda especie de gente e de que ella tirara as deducções mais extraordinarias embora as menos justificaveis».

No decorrer da audiencia a Rainha apontou como um facto indiscutivel o envenenamento do marido. Declarando fazer justiça às suas boas intenções, exprobrou-lhe entretanto o rodear-se constantemente e deixar-se levar pelos maiores bandidos (sic) do paiz, que de resto acabaram por envenenal-o com doses successivas de agua tofina, um composto de arsenico. Ella poderia mesmo precisar quando foi propinada a primeira dose. A' Court não poude refrear-se de perguntar o motivo de semelhante atrocidade, o que no seu dizer a perturbou. De facto os absolutistas tinham o maior interesse no crime, pois que o Rei estava n'essa occasião sob a censura de obedecer á influencia dos liberaes moderados.

Como um conhecimento tão intimo dos pormenores do crime poderia parecer suspeito, Dona Carlota Joaquina preferiu desviar a conversa e proseguir com suas accusações, pretendendo que vom conciliabulo efiectuado em Pariz se havia resolvido liquidar da mesma forma o infante Dom Miguel. Alguns dos cumplices já tinham partido para Vienna afim de executarem seu sinistro projecto. O conde de Villa Flor (fu-

  1. Despacho de 10 de Março de 1826, B, R. O. F. O.
  2. Despacho secreto e confidencial de 4 de Junho de 1826. B. R. O. F. O.