Página:Dom Pedro e dom Miguel.pdf/82

Wikisource, a biblioteca livre
70
DOM PEDRO E DOM MIGUEL

para quem o cynismo era o antidoto : talvez tambem o faro d'aquelles agentes lhes tivesse revelado o verdadeiro sentir intimo das suas chancellarias, que não seria para admirar os deixassem um tanto na duvida do que realmente se passava, não detestando vel-os patinhar quando o mal estava longe de ser sem cura. As chancellarias da Santa Alliança esmeravamse, como toda chancellaria que se respeita, em ardis politicos, apparentando trabalhar de accordo com Canning porque do contrario comprometteriam, n'esse caso porventura irremediavelmente, uma situação que era delicada. Não deixavam por isso de praticar o jogo diplomatico, emquanto diplomacia quizer dizer duplicidade.

Cada uma das referidas potencias possuia seu objectivo e suas razões, mas a Inglaterra era a unica a ter verdadeiro interesse em que o governo de Portugal permanecesse entre mãos femininas — primeiro a infanta, em seguida a Rainha. Dom Miguel governaria certamente de uma maneira energica senão arbitraria, como era mais verosimil : isto poderia convir mais aos adeptos do absolutismo, mas convinha menos á Grã Bretanha. O resultado foi que consciente e voluntariamente como a Inglaterra, mercê de conveniencias politicas como a França e a Russia, pelo respeito á legitimidade combinado com calculo politico como a Austria, pela força das circumstancias como a Hespanha, todas as potencias da Europa que contavam para o assumpto vieram a acatar a ordem puramente natural da successão que ia de Dom João VI a Dona Maria. Umas mais, outras menos, concordavam porem todas em que Dom Miguel não fosse despojado da participação effectiva no governo que lhe competia, mesmo segundo a melhor interpretação dos antigos textos do direito publico portuguez.

É curioso verificar as mudanças operadas n'um curtissimo espaço de tempo no espirito de Dom Pedro com relação á successão portugueza. Sir Charles Stuart obteve no Rio de Janeiro — não diz como — e deliberadamente guardou um memorandum redigido de accordo com as opiniões do gabinete de Lisboa antes do fallecimento de Dom João VI e apresentado pelo marquez de Barbacena ao Imperador, que n'elle escreveu á margem suas reflexões. Taes negociações preliminares tinham sido suspensas no Brazil porque Canning, sempre prevenido contra Sir Charles Stuart, lh'as tomou para confial-as á embaixada em Lisboa, onde aliás seus pareceres chegavam mais rapidamente. Na altura do artigo 1.º d'esse « pacto de familia » , onde se dizia que Dom Pedro seria o legatario universal de Dom João VI, exercendo o direito de dispor d'essa he-