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Os defuntos então me offereciam
Com as articulações das mãos inermes,
Num prato de hospital, cheio de vermes,
Todos os animaes que apodreciam!

É possivel que o estomago se afoite
(Muito embora contra isto a alma se irrite)
A cevar o anthropophago appetite,
Comendo carne humana, á meia noite!

Com uma illimitadissima tristeza,
Na impaciencia do estomago vasio,
Eu devorava aquelle bôlo frio
Feito das podridões da Natureza!

E hirto, a camisa suada, a alma aos arrancos,
Vendo passar com as tunicas obscuras,
As escaveiradissimas figuras
Das negras deshonradas pelos brancos;

Pisando, como quem salta, entre fardos,
Nos corpos nús das moças hottentotes
Entregues, ao clarão de alguns archotes,
A sodomia indigna dos moscardos;

Eu maldizia o deus de mãos nefandas
Que, transgredindo a egualitaria regra
Da Natureza, atira a raça negra
Ao contubernio diario das quitandas!

Na evolução de minha dôr grotesca,
Eu mendigava aos vermes insubmissos
Como indemnisação dos meus serviços,
O beneficio de uma cóva fresca.