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GRACILIANO RAMOS
tava a peroba. Pelo menos naquelle tempo não sonhava ser o explorador feroz em que me transformei.
Quanto ás vantagens restantes — casas, terra, moveis, semoventes, consideração de politicos, etc. — é preciso convir em que tudo está fora de mim.
Julgo que me desnorteei numa errada.
Se houvesse continuado a arear o tacho de
cobre da velha Margarida, eu e ella teriamos uma existencia quieta. Falariamos pouco, pensariamos pouco, e á noite, na esteira, depois do café com rapadura, rezaríamos rezas africanas, na graça de
Deus.
Se não tivesse ferido o João Fagundes, se tivesse casado com a Germana, possuiría meia duzia de cavallos, um pequeno cercado de capim, encerados, cangalhas, seria um bom almocreve. Teria credito para comprar cem mil reis de fazenda nas lojas da cidade, e pelas quatro festas do anno
a mulher e os meninos vestiriam roupa nova. Os meus desejos percorreríam uma órbita acanhada. Não me atormentariam preoccupações excessivas, não offenderia ninguém. E, em manhãs de inverno, tangendo os cargueiros, dando estalos com o buranhem, de alpercatas, chapeo de ouricuri, alguns nickeis na capanga, beberia um gole de cachaça para espantar o frio e cantaria por estes caminhos, alegre como um desgraçado.
Hoje não canto nem rio. Se me vejo ao espe-
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Aparência