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de todas as salamancas dos outros lugares.

Para a memória do dia tão espantoso lá ficou o sangão rasgado na baixada da cidade de Santo Thomé,[1] desde o tempo antigo das Missões.

VI

Faz duzentos anos que aqui estou; aprendi sabedorias árabes e tenho tornado contentes alguns raros homens que bem sabem que a alma é um peso entre o mandar e o ser mandado...

Nunca mais dormi; nunca mais nem fome, nem sede, nem dor, nem riso...

Passeio no palácio maravilhoso, dentro deste Serro do Jarau, ando sem parar e sem cansaço; piso com pés vagarosos, piso torrões de ouro em pó, que se desfazem como terra fofa; o areião dos jardins, que calco, enjoado, é todo feito de pedras verdes e amarelas e escarlates e azuis, rosadas, violetas... e quando a encantada passa todas incendeiam-se num íris de cores rebrilhantes, como se cada uma fosse uma brasa viva faiscando sem a mais leve cinza...; há poços largos que estão atulhados de doblões e de onças e peças de jóias e armaduras, tudo ouro maciço do Peru e do México e das Minas Gerais, tudo cunhado com os troféus dos senhores reis de Portugal e de Castela e Aragão...

E eu olho para tudo, enfarado de ter tanto e não poder gozar nada entre os homens, como quando era como eles e como eles gemia necessidades e cuspia invejas, tendo horas de bom coração por dias de maldade e sempre aborrecimento do que possuía, ambicionando o que não possuía...

  1. Cidade de Santo Tomé — Na Argentina; sobre o Uruguai, entre o Rio Icamaquã e a cidade rio-grandense de S. Borja. “Destruídas as reduções do Guaíra e expulsos pelos mamelucos, estabeleceram-se os missionários primeiro no centro do Rio Grande do Sul entre os rios Pardo e Jacuí. Mas só por poucos anos. Mais tarde, outra vez perseguidos e expulsos pelos mesmos, refugiaram-se uns para as hodiernas Sete Missões, os outros para a margem direita do Uruguai, encorporando-se à redução de Santo Tomé, de cujas ruínas se levantou depois a cidade do mesmo nome, quase em frente de S. Borja”. (Revo. C. Teschauer, citado) Existe no arrabalde de S. Tomé a famosa sanga, que aponta como prova do acontecimento e poder da teiniaguá encantada.