Página:Lendas e Narrativas - Tomo I.djvu/293

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“E como vae David Ouguet?—­perguntou elrei.

“Com grande melhoria:—­respondeu o prior.—­Dormiu bom espaço, e acordou em seu juizo. Contou-me que, entrando hontem após nós na casa do capitulo, e affirmando a vista na abobada, conhecêra que tinha gemido, e estava a ponto de desabar; que sentíra apertar-se-lhe o coração, e que com a sua afflicção corrêra pela crasta fóra como doudo; que no céu se lhe affigurava um relampaguear incessante e medonho; que via ... nem elle sabe o que via, o pobre homem. Depois disso, diz que perdêra o tino, e de nada mais se recorda.”

“Nem dos exorcismos?—­perguntou em meia voz Martim d’Ocem, com um sorriso malicioso.

“Nem dos exorcismos:—­retrucou Fr. Lourenço no mesmo tom, mas subindo-lhe ao rosto a vermelhidão da colera.—­A proposito, doutor. Dizem-me que Annequim é morto, [1] e que elrei proveu o cargo em um dos de seu conselho. Seria verdadeira esta mercê singular?”

E o frade media o letrado de alto a baixo com os olhos irritados. Este preparava-se para

  1. Annequim era o bobo do paço em tempo de D. Fernando, a quem sobreviveu.