Página:Lendas e Narrativas - Tomo II.djvu/137

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que ha mais vasto e profundo, os ermos, os mares, o coração humano; porque ao cabo d’isso tudo está o finito. Immensa, eterna, absoluta só ha uma idéa, que está fora do universo. Esta é a idéa de Deus.

Por isso, grande é somente Deus!

Mas dizia eu que o egoismo da tia Jeronyma era incompleto: digo mais; era incompletissimo. Quando o sacristão vinha alta noite quebrar o dormir risonho e variamente resonado do padre prior; quando á voz roufenha do ostiario aldeião, despertando o pastor para ir levar as consolações extremas á ovelha moribunda, e tira-la lá, porventura, dos dentes e garras do cão tinhoso, se ajunctava o trovejar ao longe da tempestade, o fustigar da chuva nas vidraças progressivas das meias janellas, e o ramalhar da ventania nos dous platanos do adro, era sem duvida que o resmungar da tia Jeronyma, apparecendo da banda da sua pocilga com a candeia mortiça na mão e as roupinhas vermelhas do envez, tinha o que quer que fosse repugnante e vil. A boa da velha pensava, acaso, que a morte não seria tão descortez que negasse ao espirito do pobre moribundo o tempo necessario para poder, ao abandonar o corpo, subir como chammasinha tenue, e galgar para o céu sobre um raio do sol