Página:Luciola.djvu/134

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sonhos. Ela ouvia tudo com evidente interesse: o nome de uma pessoa querida por mim, ou de parente ou de amigo; uma data de família; uma localidade que fora teatro de algum dos pequenos acontecimentos da vida; tudo se gravara tão rápida e profundamente no seu espírito, que as suas observações não pareciam de quem acabava de ouvir, mas de quem acompanhara dia por dia os fatos que eu lhe contava. Identificando-se com a minha alma, graças à admirável flexibilidade do senso íntimo da mulher, ela sentia e comovia-se, recordando as minhas afeições; e nutria-se das minhas ambições, sonhando com elas, e dourando-as aos reflexos de sua rica imaginação.

Lúcia trazia nessa manhã um traje quase severo: vestido escuro, afogado e de mangas compridas, com pouca roda, simples colarinho e punhos de linho rebatidos; cabelos negligentemente enrolados em basta madeixa, sem ornato algum. Em vez dos pantufos aveludados que costumava usar em casa, no desalinho, calçava uma botina de merinó preto, que ia-lhe admiravelmente, porque ela tinha o mais lindo pé do mundo. Quando o vento que entrava pela janela erguia indiscretamente a fímbria da saia, apesar do movimento rápido que a conchegava, descobria-se a volta bordada de uma calça estreita, cerrando o colo esbelto da perna divina.

O homem é um sistema de contrariedade.

As confidências mútuas, as expansões d'alma despegada do seu invólucro material, o recato austero do traje que ocultava belezas criadas para viver