caridade. O tio Esguelhas, viúvo, tinha uma filha de quinze anos paralítica, desde pequena, das pernas. "O diabo embirrou com as pernas da família", costumava dizer o tio Esguelhas. Era decerto esta desgraça que lhe dava uma tristeza taciturna. Contava-se que a rapariga (cujo nome era Antônia, e que o pai chamava Totó) o torturava com perrices, frenesis, caprichos abomináveis. O doutor Gouveia declarara-a histérica: mas era uma certeza, para as pessoas de bons princípios, que a Totó estava possuída do Demônio. Houvera mesmo o plano de a exorcismar; o senhor vigário-geral, porém, sempre assustado com a imprensa, hesitara em conceder a permissão ritual, e tinham-lhe feito apenas, sem resultado, as aspersões simples de água benta. De resto não se sabia a natureza do endemoninhamento da paralítica: a Sra. D. Maria da Assunção ouvira dizer que consistia em uivar como um lobo; a Gansosinho, em outra versão, assegurava que a desgraçada se dilacerava com as unhas... O tio Esguelhas, esse, quando lhe perguntavam pela rapariga, respondia secamente:
— Lá está.
Os intervalos do seu serviço da igreja passava-os todos com a filha no casebre. Só atravessava o largo para ir à botica por algum remédio, ou comprar bolos à confeitaria da Teresa. Todo o dia aquele recanto da Sé, o pátio, o barracão, o alto muro ao lado coberto de parietárias, a casa ao fundo com a sua janela de portada negra numa parede lazeirenta, permaneciam num silêncio, numa sombra úmida: e os meninos do coro, que às vezes se arriscavam a ir pé ante pé, pelo pátio, espreitar o tio Esguelhas,