Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/503

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Lembras-te desse tempo de delícias,

Ó anjo feiticeiro, Amélia amada,

Quando tudo era risos e ventura

E a vida nos corria sossegada?

Lembras-te dessa noite de poesia

Em que a Lua brilhava pelos céus

E nós unindo as almas, ó Amélia,

Erguemos nossa prece para Deus?...

Mas a despeito de todos os esforços nunca passara destas duas quadras - apesar de as ter produzido com uma facilidade prometedora - como se o seu ser contivesse apenas estas duas gotas isoladas de poesia, e, soltas elas à primeira pressão, nada mais restasse senão a seca prosa do temperamento carnal.

E esta existência vazia relaxara-lhe tão sutilmente todo o maquinismo da vontade e da ação, que qualquer trabalho que lhe pudesse encher a fastidiosa concavidade das horas infindáveis, era-lhe odioso como o peso dum fardo injusto. Preferia ainda os tédios da ociosidade aos tédios da ocupação. A não serem os deveres estritos que ele não podia desleixar sem escândalo e sem censura - desembaraçara-se, pouco a pouco, de todas as práticas do zelo interior: nem a oração mental, nem as visitas regulares ao Santíssimo, nem as meditações espirituais, nem o rosário à Virgem, nem a leitura à noite do Breviário, nem o exame de consciência - todas estas obras da devoção, estes meios secretos de santificação progressiva substituía-os pelos infindáveis passeios pelo quarto, do lavatório à janela, e por maços de cigarros