Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/510

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não fosse o abade Ferrão que começara então a vir ver muito regularmente a irmã do amigo cônego.

Amélia ouvira falar muitas vezes nele na Rua da Misericórdia; dizia- se lá que o Ferrão tinha "idéias esquisitas"; mas não era possível recusar-lhe nem a virtude da vida nem a ciência de sacerdote. Havia muitos anos que era ali abade; os bispos tinham-se sucedido na diocese, e ele ali ficara esquecido naquela freguesia pobre, de côngrua atrasada, numa residência onde chovia pelos telhados. O último vigário-geral, que nunca dera um passo para o favorecer, dizia-lhe todavia, liberal de palavreado:

— Você é um dos bons teólogos do reino. Você está predestinado por Deus para um bispado. Você ainda apanha a mitra. Você há-de ficar na história da Igreja portuguesa como um grande bispo, Ferrão!

— Bispo, senhor vigário-geral! Isso era bom! Mas era necessário que eu tivesse o arrojo dum Afonso de Albuquerque ou dum D. João de Castro, para aceitar aos olhos de Deus semelhante responsabilidade!

E ali ficara, entre gente pobre, numa aldeia de terra escassa, vivendo de dois pedaços de pão e uma chávena de leite, com uma batina limpa onde os remendos faziam um mapa, precipitando-se a uma meia légua por um temporal desfeito se um paroquiano tinha uma dor de dentes, passando uma hora a consolar uma velha z quem tinha morrido uma cabra... E sempre de bom humor, sempre com um cruzado no fundo do bolso dos calções para uma necessidade do seu