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Sérgio Branco

Uma diferença evidente entre o domínio público no direito autoral e seu homônimo do direito administrativo é que o primeiro não se encontra regido por normas de direito público. Além disso, outra diferença reside no fato de que que, no primeiro, é impossível sua apropriação por terceiros em decorrência de autorização estatal (em regra, e a bem da verdade, essa impossibilidade é absoluta). Já o bem em domínio público no direito administrativo poderá, em certas circunstâncias, ser desafetado.

Segundo Carvalho Filho, “pode conceituar-se a afetação como sendo o fato administrativo pelo qual se atribui ao bem público uma destinação pública especial de interesse direto ou indireto da Administração. E a desafetação é o inverso: é o fato administrativo pelo qual um bem público é desativado, deixando de servir à finalidade pública anterior”[1].

Ocorrendo a desafetação, muda a classificação jurídica do bem e assim as possibilidades de sua destinação. Por exemplo, um bem de uso especial que passasse pelo fenômeno da desafetação se tornaria um bem dominical, podendo, como consequência, ser alienado a terceiros.

Apesar de sob determinadas circunstâncias haver uma reapropriação dos direitos autorais antes em domínio público, o fenômeno é em tudo distinto do processo de desafetação por que podem vir a passar os bens públicos, como se verá no terceiro capítulo desta tese.

1.3.2. Fundamentos para o domínio público

 

1.3.2.1. Razões sociais

O ser humano sempre criou. Desde as “Vênus Esteatopígias”, que datam de 40.000 a.C., até o último tweet, o ser humano sempre sentiu uma irrefreável vontade de se expressar[2]. É evidente, entretanto, que a criação do ser humano não é fruto de geração espontânea: toda a cultura, de todos os lugares e épocas, é reflexo das circunstâncias. Assim é que “pode-se dizer que a cultura é algo sempre inacabado, assim como é sempre inconcluso um software aberto. Em outras palavras: a cultura consiste em um estar-se-fazendo eterno. Mutatis mutandis, é possível parafrasear a máxima de Lavoisier: na cultura, nada se perde, tudo se transforma. (...) Portanto, todo criador intelectual age ‘refazendo tudo’, como escreveu Gilberto Gil, em 1975, em sua obra lítero-musical Refazenda. Toda criação é, de certo modo, uma derivação”[3].

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  1. Grifos no original. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Cit.; p. 854.
  2. Nesse sentido, retomamos a célebre afirmação de Fernando Pessoa, que disse: “a literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta”.
  3. MORAES, Rodrigo. Por que obras Protegidas pelo Direito Autoral Devem Cair em Domínio Público? Direitos Autorais – Estudos em Homenagem a Otávio Afonso dos Santos. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, 2007, p. 305. O autor comenta ainda dois outros exemplos loquazes. No primeiro, cita Roland Barthes que, em seu ensaio “A Morte do Autor”, teria afirmado que “o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura” e que “o escritor não pode deixar de imitar um gesto sempre anterior, nunca original; o seu único poder é o de misturar as escritas”. No segundo exemplo, certamente mais lírico, apresenta a ideia de intertextualidade da poeta Adélia Prado: “[p]orque tudo que invento já foi dito nos dois livros que eu li: as escrituras de Deus, as escrituras de João. Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão”.