Página:O Engenhoso Fidalgo D. Quichote de La Mancha, v1 (1886).pdf/24

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Orçava na edade o nosso fidalgo pelos cincoenta annos. Era rijo de compleição, secco de carnes, enxuto de rosto, madrugador, e amigo da caça.

Querem dizer que tinha o sobre-nome de Quijada ou Quesada (que n’isto discrepam algum tanto os auctores que tractam da materia), ainda que por conjecturas verosimeis se deixa entender que se chamava Quijana. Isto porém pouco faz para a nossa historia; basta que, no que tivermos de contar, nos não desviemos da verdade nem um til. É pois de saber que este fidalgo, nos intervallos que tinha de ocio (que eram os mais do anno) se dava a ler livros de cavallaria, com tanta affeição e gosto, que se esqueceu quasi de todo do exercicio da caça, e até da administração dos seus bens; e a tanto chegou a sua curiosidade e desatino n’este ponto, que vendeu muitas courellas de semeadura para comprar livros de cavallarias que ler; com o que junctou em casa quantos poude apanhar d’aquelle genero.

D’entre todos elles, nenhuns lhe pareciam tão bem como os compostos pelo famoso Feliciano da Silva, porque a clareza da sua prosa e aquellas intricadas razões suas lhe pareciam de perolas; e mais, quando chegava a ler aquelles requebros e cartas de desafio, onde em muitas partes achava escripto: a razão da semrazão que a minha razão se faz, de tal maneira a minha razão enfraquece, que com razão me queixo da vossa formosura; e tambem quando lia: os altos céos que de vossa divindade divinamente com as estrellas vos fortificam, e vos fazem merecedora do merecimento que merece a vossa grandeza. Com estas razões perdia o pobre cavalleiro o juizo; e desvelava-se por entendel-as, e desentranhar-lhes o sentido, que nem o proprio Aristóteles o lograria, ainda que só para isso resuscitára. Não se entendia lá muito bem com as feridas que D. Belianis dava e recebia, por imaginar que, por grandes facultativos que o tivessem curado, não deixaria de ter o rosto e todo o corpo cheio de cicatrizes e costuras. Porém, comtudo louvava no auctor aquelle acabar o seu livro com a promessa d’aquella inacabavel aventura; e muitas vezes lhe veio desejo de pegar na penna, e finalisar elle a coisa ao pé da lettra como ali se promette; e sem duvida alguma o fizera, e até o saccára á luz, se outros maiores e continuos pensamentos lh’o não estorvaram.

Teve muitas vezes testilhas com o Cura do seu logar (que era homem douto, graduado em Siguença sobre qual tinha sido melhor cavalleiro, se Palmeirim de Inglaterra, ou Amadiz de Gaula. Mestre Nicolao, barbeiro do mesmo povo, dizia que nenhum chegava ao «Cavalleiro do Febo»; e que, se algum se lhe podia comparar, era D. Galaor, irmão do Amadiz de Gaula, o qual era para tudo, e não cavalleiro melindroso, nem tão chorão como seu irmão, e que em pontos de valentia lhe não ficava atraz.

Em summa, tanto n’aquellas leituras se enfrascou, que as noites se lhe passavam a ler desde o sol posto até á alvorada, e os dias, desde o amanhecer até fim da tarde. E assim, do pouco dormir e do muito ler se lhe seccou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juizo.

Encheu-se-lhe a phantasia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como pendencias, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e disparates