Página:O Engenhoso Fidalgo D. Quichote de La Mancha, v1 (1886).pdf/31

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tinha lido nos livros do seu uso; e, quanto a armas brancas, limparia as suas por modo, logo que para isso tivesse logar, que nem um arminho lhes ganhasse.

Com isto serenou, e seguiu jornada por onde ao cavallo appetecia por acreditar que n’isso consistia a melhor venida para as aventuras. Indo pois caminhando o nosso flammante aventureiro, conversava comsigo mesmo e dizia:

— ¿Quem duvida de que lá para o futuro, quando saír á luz a verdadeira historia dos meus famosos feitos, o sabio que os escrever ha-de pôr, quando chegar a narração d’esta minha primeira aventura tão de madrugada, as seguintes phrases:? «Apenas tinha o rubicundo Apollo estendido pela face da ampla e espaçosa terra as doiradas melanias dos seus formosos cabellos, e apenas os pequenos e pintados passarinhos, com as suas farpadas linguas, tinham saudado, com doce e melliflua harmonia, a vinda da rosada aurora, que, deixando a branda cama do zeloso marido, pelas portas e varandas do horisonte manchego aos mortaes se mostrava; quando o famoso cavalleiro D. Quichote de la Mancha, deixando as ociosas pennas, se montou no seu famoso cavallo Rossinante, e começou a caminhar pelo antigo e conhecido campo de Montiel (e era verdade, que por esse mesmo campo é que elle ia); e continuou dizendo: a Dilosa edade e seculo ditoso, aquelle em que hão de sair á luz as minhas famigeradas façanhas, dignas de gravar-se em bronze, esculpir-se em marmores, e pintar-se em paineis para lembrança de todas as edades! » Ó tu, sabio encantador (quem quer que sejas) a quem ha de tocar ser o chronista d’esta historia, peço-te que te não esqueças do meu bom Rossinante, meu eterno companheiro em todos os caminhos e carreiras.

E logo passava a dizer, como se verdadeiramente fora ennamorado:

— Princeza Dulcinea, senhora d’este captivo coração, muito aggravo me fizestes em despedir-me, e vedar-me com tão cruel rigor que apparecesse na vossa presença. Apraza-vos, senhora, lembrar-vos d’este coração tão rendidamente vosso, que tantas máguas padece por amor de vós.

E com estes ia tecendo outros disparates, todos pelo teor dos que havia aprendido nos seus livros, imitando, conforme podia, o proprio fallar d’elles; e com isto caminhava tão vagaroso, e o sol caía tão rijo, que de todo lhe derretêra os miolos, se alguns tivera.

Caminhou quasi todo o dia sem lhe acontecer coisa merecedora de ser contada, com o que elle se amofinava, pois era todo o seu empenho topar logo logo onde provar o valor do seu forte braço.

Dizem alguns auctores que a sua primeira aventura foi a do porto Lápice; outros, que foi a dos moinhos de vento. Mas o que eu pude averiguar, e o que achei escripto nos annaes da Mancha, é que elle andou todo aquelle dia, e, ao anoitecer, elle com o seu rossim se achava estafado e morto de fome; e que, olhando para todas as partes, a ver se se lhe descobriria algum castello, ou alguma barraca de pastores, onde se recolher, e remediar sua muita necessidade, viu não longe do caminho uma venda, que foi como