Página:O Inferno (1871).pdf/112

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um por um casal, outro por uma venera, por um acepipe, por um prato de lentilhas, por um penacho, por uma fitinha, por um trapo, por trinta contos, por trinta reis. Condemna-se este a trabalhar, aquelle a passear, um a comer, outro a jejuar, a ler, a dansar, a palestrar, a meditar, a vestir, a despir, desde a aurora até ao escurecer, desde a noite até ao dia, todos se condemnam a bel-prazer.

Distinguem-se lá os peccados que Deus pune indistinctamente. Permittem-se os que Deus castiga até com eternas penas, quando é elle só quem pune; recua-se, porém, dos que Deus castiga e a sociedade tambem. Não se diga pois que o inferno atalha os crimes dos indifferentes. Tambem ahi é manifestamente esteril similhante crença. O que se teme é o vigia, a patrulha, o commissario da policia, essas personificações vulgares, mas terriveis da opinião e da lei. Temem-se as algemas, o carcereiro, a masmorra, e ainda mais á mistura com os scelerados. Por muito dura e inevitavel que se figure, a pena material não os conterá sempre quando a paixão os esporêa. Do mesmo modo que affrontam o inferno, affrontariam a cadêa e até a forca, se a forca estivesse ás escuras; porém a vergonha, o estrondo da queda, é para o maior numero a pena intoleravel. Seriam capazes de desafiar carrascos e diabos; e não ousariam encarar o desprezo do amigo, do visinho, do estranho, do transeunte, do mendigo; não lhes faz grande mossa a ignominia diante de sua mãe ou de seus filhos, e tremem de se vêr baralhados com