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O INFERNO
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de França que empregava as suas damas a seduzir, quero dizer, a converter os jovens huguenots e os velhos tambem. Todo o seculo XVII foi devoto, incluindo os cavalleiros farçolas, os bandidos, os abbades galans e os abbades demoniacos, os aváros e os glotões, os orgulhosos e os abjectos, as marquezas adulteras e os duques medianeiros, os magistrados venaes e as princezas aventureiras. Todos esses tinham bancada na egreja, iam aos sermões e discutiam ardentes sobre a materia da graça. Os amantes arrufavam-se na quaresma e faziam as pazes depois de Pascoa. Madame de Montespan, na côrte, cuidava em salvar-se, e ninguem quizesse obrigal-a a comer, á sexta feira, uma aza de borracho; o que ella então comia era salmão, lagostins, esperregado e pastelinhos de leite. Madame de Sévigné, uma das mais honestas e amaveis senhoras d'aquelle tempo, tambem devota, lia os Contos de La Fontaine, e ficava-se a rir com elles e mais a filha. O inferno era como se nada fosse n'essas coisas. Quem desgraçadamente pensava muito n'elle, enterrava-se no claustro, como Mr. de Rancé e M.elle de La Vallière; mas, pelo ordinario, havia pouco quem se debruçasse a espreitar o tal abysmo; e quem se desse a esses exames sahia impertinente, misanthropo e jansenista. Fallava-se do inferno; mas sem reflectir grande coisa; encaravam-no pela casca. O grande caso era rir, cortejar o rei, agradar a todos, inclusivè a Deus, dando-lhe a vêr com infinita habilidade, espectaculos de devoção, de jogo, de ambição e... do mais.