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O INFERNO


O tempo e as revoluções que tantas mudanças tem feito, não mudaram o coração humano. Os devotos não são tantos como d'antes, mas são da mesma estôfa, e tanto montam estes como os outros, vistos a vulto. Relaxação extrema em fidalgos e populaça; sêde ardentissima de enriquecer; sordidissimos orgulhos; amores desatinados; paixões eriçadas de remordentes espiritos e blandiciadas de prazeres! Deus me defenda de calumniar peccadores a cheirarem ao incenso das igrejas! Bourdaloue, que os conhecia, e os demais prégadores assim antigos que modernos, disseram d'elles mais mal do que eu. O que sei é que o medo não faz bons aquelles que o bem, só de per si, não convida. O pejo do peccado poderá restaurar os cahidos; mas o medo, depois do peccado, é de todo o ponto inutil.

Não esqueçamos, porém, que ha devotos quasi irreprehensiveis, os quaes, sem serem heroes nem se destinarem a tanto, cumprem, sem desfallecer, a modesta missão que lhes quadra sobre a terra. São bemfazejos em pequena escala; restringem-se a pouco mais de sua casa; quanto muito, chegam até á visinhança; e, se por vezes, a mão caridosa ultrapassa estes limites proveitosamente, de novo se retrahe ao seu limite, onde está a maior formosura e grandeza de sua missão. Estes devotos não se distinguem dos outros por grande assuidade nos templos; o que os differencêa é o serem esmoleres; e mais visivelmente se estremam por se absterem do mal. Não são rixosos nem maldizentes: