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O INFERNO
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repleta de impudentes scelerados, porque vos será perguntado se Deus não póde, mais que os homens, vencer corações rebeldes, ou se mais lhe praz exercitar sua omnipotencia a perpetuar um feio espectaculo que nós, philosophos e christãos, bem quizeramos que fosse banido.

Esta concepção do inferno, tão ignobil quanto atroz, data visivelmente de tempos barbaros, em que a vida physica afogava a moral, e a justiça não transparecia aos olhos propriamente do sabio senão atravez da nuvem sanguinosa da vingança.

Punir eternamente o vicio com o vicio, a immoralidade com a immoralidade! que projecto! e, na execução d'elle, que prodigio! Pois não basta justiçar o homem no corpo? Será preciso que o aváro, durante a tortura, arda de saudades dos thesouros que tantos cuidados lhe custaram e tantas dôres grangearam? Ha de o comilão, deitado sobre grelhas em brasa estar a pensar sempre na cosinha e na garrafeira? O voluptuoso, comido de chammas e de bichos, ha de estar sempre a lagrimar pelas parceiras? Acham isto possivel? Sendo assim, no inferno sabe-se melhor do que na terra o que valem riquezas, prazeres, divisas, veneras, medalhas, sceptro e arminhos. Ahi, ser-se-ha, de facto, blasphemo, e intencionalmente devasso, adultero, usurario, despota, valido, mas tudo isto sobre brasas? Havemos de confessar que o local não é dos melhores para taes desejos, e que só por milagre, em tal sitio e por muito tempo, possa haver similhantes