Página:O Inferno (1871).pdf/188

Wikisource, a biblioteca livre
168
O INFERNO

vagalhão que rossa a nuvem rugindo, subita recaiu e expirou em prolongado gemido.

Mas logo um brado novo retumba mais estridente ainda, e, eu, ouvindo-o, não distinguia se era oração, se blasphemia.

E bradava: — Creio na vossa justiça, meu Deus; mas deixai-me crêr na vossa misericordia. Não é ella tão infinita como a vossa justiça? Não é eterna? Se me perdoaveis quando eu estava na terra, porque não me perdoais aqui? Se eu sou o mesmo peccador, não sois vós o mesmo Deus? E, se a morte me mudou, pôde a morte d'um ente como eu mudar a vossa immutavel natureza? Cansou-se acaso a vossa bondade? Exhauriu-se? Sois vós susceptivel de cansaço? E, se alguma de vossas virtudes é transitoria, de circumstancia e occasional, é forçoso que seja a bondade, aquella ineffavel bondade que nós ignorantemente consideravamos lá em cima a mesma essencial e inalteravel virtude vossa! Se assim é — proseguiu a voz desesperada — anniquilai-me, Deus Omnipotente! Esta existencia é inutil; sou de mais no universo. Que lucraes com as minhas dôres? Tendes precisão d'ellas? Retomai esta vida de que sem duvida abusei, e esta intelligencia que perverti; apagai em mim esta luz, visto que principiam a rasgar-se os veos que a escurentavam.

Tirai-me a lembrança do céo, a ancia de ser feliz, a necessidade d'amar, a necessidade de saber; tirai-me, sobre tudo, por piedade, o sentimento da justiça,