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O INFERNO

e confiar em uns com desconfiança d'outros; dizem-nos que tudo é verdadeiro, e verdadeiro com o mesmissimo titulo, não porque sejam umas cousas mais ou menos persuasivas que outras, mas porque se acham escriptas n'aquelle livro.

Dispensam-nos de procurar na Biblia o cunho interior que Deus gravou na verdade para que a reconheçamos. Caracteres naturaes e distinctivos do erro podem guiar-nos em tudo; mas na Biblia não. N'outros livros é facultativo discernir o justo do injusto; para o quê temos regras certissimas, e instrumentos agudissimos; mas é peccado querer julgar a Biblia. Cumpre-nos, lendo-a, desconfiar do nosso coração, do nosso espirito, de tudo, salvo d'ella. Assiste-nos o direito de dizer, como Platão que Homero ultraja a divina magestade, quando mistura o Olympo com as paixões humanas; porém, quando a Biblia glorifica a perfidia de Jahel, e a cavillação de Judith, e o roubo e carnificina dos chananeos, e faz collaborar Deus em tantas traições e morticinios, não nos é permittido o duvidar. Se Isaias nos figura o Salvador de Israel calcando o povo como o vinhateiro esmaga a uva no lagar, foliando sobre elle e sacudindo com selvagem alegria os seus vestidos aspergidos de sangue, não seu, mas dos homens, devemos dizer: Amen! eis aqui o bom pastor, o cordeiro de Deus, a mansa victima do Calvario, o Christo na sua gloria! E quando o psalmista comparar o Senhor a um homem embriagado do vinho que lhe redobra as forças e lhe faz expedir