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O INFERNO
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no tocante á vida presente. Este ultimo facto, muito significativo, provém dos casuistas. Foram elles quem primeiro quiz achanar aos homens a estrada do céo. Como não soubessem conciliar as necessidades da vida terrestre com as da fé, e não ousassem embarrar pelo inferno, com medo de torriscar os dedos, derruiram audazmente a moral. Graças lhes sejam dadas, que isto de peccados mortaes está por um fio! O assassino, mal lavou as mãos, e o perjuro mal lavou a lingua, são admittidos ao sagrado banquete, O pulpito continua a fuzilar trovoadas minacissimas; é ainda Isaias e S. Paulo a bradarem; mas, no tribunal da penitencia, os coriscos apagam-se; quem confessa é o tolerante padre Lémoine, que perfeitamente percebe que uma duqueza, uma capitalista, uma burgueza opulenta não podem viver de favas, nem trajar de serguilha, nem dormir no taboado, nem imitar sequer de longe a perfeição negativa das santas reclusas, cujas virtudes andam celebradas nos pulpitos. Descobrir, porém, no complexo dos actos dos homens, o limite exacto do dever, isso é desvario: ou prohibir, ou permittir tudo quando se renuncia e dirigir verdadeiramente as peccadoras mundanas para o antigo ideal da abstinencia ascetica. O theatro, o baile, os hombros nús, a maledicencia, as prodigalidades do luxo, a parcimonia das esmolas, a lisonja, a ambição, a cupidez, a ingratidão, as desavenças, tudo passa, tudo é venial, nada impede da desobriga. Nem o juiz nem o penitente conhecem regra. O mais virtuoso e austero padre