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O INFERNO

das sentenças desesperadoras fulminadas contra o mundo e contra os affectos e luzes naturaes, contra o bom siso e contra a vida? Inventei eu as devotas reflexões, azadas para mirrar os corações das mães e dos filhos, e uns pensamentos afogueados que calcinam o cerebro como o alcool, embrutecendo uns, e desvairando outros em devaneios melancolicos? É culpa minha se o inferno parece coisa atroz? Não suavisei eu em vez de encarecer as pinturas conhecidas? Se é immoral, estava a meu cargo mudar-lhe a condição? Attribui eu ao padre Bohours palavras alheias, ou a S. Bernardo coisa que elle não dissesse?

É verdade que eu muitas vezes poderia auctorisar-me com textos, e dizer em grego ou latim, ou italiano ou allemão, em nome d'outrem, o que expuz a meu modo. Mas que tinha eu a ganhar com esse systema? Nenhuma das idêas que discuti pertence nominalmente a este ou áquelle theologo; junta ou separadamente todas lhes pertencem: é dominio commum. Seria apoucar e abater a questão conferir a uma crença tradicional visos de opinião particular. Acato a virtude, admiro o engenho, onde quer que os encontro, até nos mesmos que me ameaçam com as penas eternas; não mal-quero por tanto a S. Gregorio, nem a S. Jeronymo, nem ao padre Nicole, nem a algum theologo morto ou vivo. Não me estive a quebrar lanças com personagens mais ou menos eminentes: que são apenas eccos de doutrinas que vogaram muito antes d'elles. Se eu tivesse em cada pagina citado um doutor, julgar-se-hia