Página:O Inferno (1871).pdf/55

Wikisource, a biblioteca livre
O INFERNO
35

nem por isso é menos racional, equitativo e moral.

Ainda assim, por mais que fizesse este doutor atroz, seria menos cruel que o Deus prégado por elle. Se a morte não viesse rapidamente arrancar-lhe a victima, o officio de algoz cançal-o-hia. É difficil de supportar, ainda mesmo a um mau pai, o aspecto das torturas que elle exercita na pobre creatura que gerou. No coração humano tudo é mudavel, tanto o amor, como, por feliz compensação, o odio. Um principe morovingiano, chamado Charmne, revoltou-se contra Clotario; Clotario fez queimar vivos seu filho, a nora e os netos; mas diz a historia que elle se arrependêra. Se tal supplicio durasse uma semana sómente, de certo elle os teria salvado. Que bom pai! Que excellente rei!

Que amavel é este Clotario de par com o Deus que nos pintam! Este Deus quer que pensemos no inferno, mas não que se morra ahi; á imitação do algoz das prizões feudaes, deixa viver os pacientes torturando-os e disvela-se em lhes protrahir a agonia! Manda-os soffrer, ouve-os gemer durante a eternidade, e procede sua vingança, sem fechar olhos, sem tapar ouvidos, e por isso mesmo é que n'elle reconhecemos não um homem variavel, mas o que elle é, um Deus.

Ó Deus dos antigos, Bel, Teutates, Plutão, Eolin, seja qual fôr teu nome, Deus das batalhas, Deus do gladio, Deus dos fortes, guerreiro feroz, senhor irascivel, juiz sem entranhas, Deus dos eternos rancores,