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O INFERNO

minhas iniquidades? Nas minhas noites de libertinagem, matei; durante o somno de homens que valiam mais do que eu, assassinei um aváro para o roubar, um amigo da minha infancia para entrar no seu leito, uma mulher que eu havia seduzido e que morreu beijando-me as mãos, pensando em mim, a louca, mais do que em Deus! D'entre elles os peores que eu feri eram innocentes comparados comigo, e eil-os mortos intempestivamente, sem terem tempo de se arrependerem; eil-os engolphados na gehenna, com o coração roido pelo verme que não morre, gementes, chorosos, amaldiçoando-me; e eu, seu assassino; eu, peccador envelhecido na impiedade e agraciado por um milagre, louvarei Deus eternamente, por me haver feito instrumento da condemnação d'aquellas pobres almas!

Com as minhas delapidações, reduzi á miseria e a todas as tentações da miseria, e a todos os desvios da desesperação aquella familia que lá vejo em baixo: o irmão vende a irmã, a irmã vende a sobrinha, o pae vende os seus juramentos, os seus amigos, o seu paiz; a mãe arranca-se os cabellos; todos choram, todos soffrem, todos me accusam, e os seus gemidos chegam até mim; e eu hei de vêr imperturbavel, sem remorsos, sem dôr, aquelles fructos de meus crimes, aquellas ulceras, aquelles prantos, aquelles opprobrios, aquellas perfidias, aquelles escandalos em que eu tenho parte; e, pois que Deus se apiedou de mim, eu não terei piedade dos outros, e o que na terra me affligia,