Página:O Inferno (1871).pdf/97

Wikisource, a biblioteca livre
O INFERNO
77

dôres quotidianas. O sino que dobra, o sahimento que passa, o doente que vae para o hospital, o pedreiro que cae da parede, o obreiro apertado entre o encaixe de uma roda e triturado nos dentes d'ella, os terraplenadores sotterrados nas saibreiras aluidas, os marinheiros comidos pelas vagas, o typho que devasta um bairro inteiro de operarios, mulheres sem maridos, paes sem filhos, filhos sem mães, tudo isto por vezes lhes relembra o Deus rancoroso que lhes prégam, e as surprezas da morte, e os perigos de sua precaria existencia, e com as miserias que findam outras que principiam, para nunca mais acabarem. Este povo assim é como um rebanho que se leva ao matadouro, aguilhoado pelos pastores, lacerado pelos cães, atormentado pelas moscas, cançado, sanguento, sequioso, abatido, estupido.

Compadecei-vos, pois, d'esses que nunca vos darão bons ermitões. Não ha, por ventura, um ideal mais aceitavel e ao mesmo tempo mais puro que lhe mostreis? Não ha senão esse a que aspira o ente sem familia, sem ligações e cuidados d'este mundo? Se, ao menos, podesseis annunciar-lhes a justiça de Deus sem os assombrar! Não são já de si que farte mysteriosas e raladoras as dôres d'esta vida? Não será de mais rematal-as com o terribilissimo mysterio do inferno? Pois se tendes a certeza que serão condemnados no trem de vida que levam, deixae-os respirar, e beber, e rir e dançar, em quanto o animo e tempo lhes não faltam; que a desesperação poderá leval-os a peores excessos.