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sobre um jardim todo escuro d’arvores e de moitas de flôres.

Ordinariamente o conde e eu entravamos pelo jardim. Tinhamos uma pequena chave que abria a portinha verde no muro, todo coberto de musgo e de copas d’arbustos orientaes. N’essa noite, ao abrir a porta, cantando em voz alta, senti sumir-se rapidamente na espessura das folhagens um vulto. O ar estava sereno, accendi um phosphoro, e áquella luz trémula, entrei na sombra, para descobrir o vulto, entre as ramagens. Mas a pessoa, vendo-se seguida, e sentindo a impossibilidade de se esquivar rapidamente, retrocedeu, com uma naturalidade visivelmente artificial, e proferiu o meu nome. Era Carmen.

— Que faz aqui? disse eu.

— Mato-me. Não lhe disse que sempre que suava de noite, me erguia e vinha apanhar o orvalho?

Mas ella estava completamente vestida de seda preta, e tinha sobre os hombros uma larga capa escura, de fórma arabe, com grande capuz!

— Ah! minha cara, disse eu, mata-se mas é d’amores. A esta hora, com essa toillette, n’este jardim, com este aroma de laranjeiras!... Que historia me vem contar d’orvalhos e de suor?

— Digo-lhe a verdade. Imagina que eu não preferiria aqui n’esta sombra encontrar alguem?...

— E D. Nicazio? Peça a D. Nicazio que lhe faça a côrte. Que lhe dê uma serenada, que suba por uma escada de corda, que a seduza n’este jardim...

Emquanto eu fallava, davam horas na Igreja de S. João, e Carmen mostrava uma agitação impaciente. A todo o momento olhava para a porta do jardim, torcendo freneticamente uma luva descalçada.

Eu comprehendi que ella esperava alguem. Alguem, isto é, el querido, el precioso, el saleroso, el niño de toda a legitima andaluza. Affastei-me discretamente, como um confidente, e no momento que pisava a rua areada que levava ao pavilhão, senti a porta do jardim ranger com uma ternura plangente.

— É elle, pensei eu. É o niño. Pobre Carmen! Bebe vinagre, apanha os orvalhos por causa de Rytmel, e mal chega a noite, não póde ser superior a vir receber debaixo das laranjeiras algum cabelleireiro francez com voz de tenor, ou algum tenor maltez com bigodes de cabelleireiro.

Subi ao meu quarto, mas não tinha somno; a noite era suave e languida, mordia-me uma aspera curiosidade, e com a astucia d’um ladrão napolitano, desci as escadas,