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Como quer que tenha de ser, minha noiva, eu entendo cumprir perante a minha consciencia um dever sagrado contando-te, sem omissões e sem reticencias, tudo, absolutamente tudo, quanto se passou por mim. A verdade é que te amo! que te amo, e que te amarei! Outra imagem, incoercivel, vaporosa, vaga, perpassou por mim, mas esvaiu-se como a sombra de um sonho doentio, varada sempre pelo teu olhar candido que atravez d’ella se fixava e se embebia constantemente no meu.

Uma noite, ha dois mezes, recolhendo-me por volta das nove horas a minha casa, que fica situada em um dos bairros excentricos de Lisboa, encontrei parada uma carruagem de praça, cujo cocheiro altercava grosseiramente com uma senhora, que estava em pé junto do trem, vestida de preto e coberta com um grande veu de renda. Esta senhora trocou algumas palavras com outra mais idosa que a acompanhava e disse ao cocheiro com uma voz singularmente fina, tremula, delicada, musical, como nenhuma até então ouvida por mim:

— Onde quer que lhe mande pagar?... Não trago mais dinheiro.

— Importa-me pouco isso, respondeu o cocheiro. Quem não tem dinheiro anda a pé. Já lhe disse á senhora quanto é que me deve pela tabella. Se não paga o resto, chamo um policia. Se não traz dinheiro, dê-me um penhor.

Ella então bateu impacientemente com o pé no chão, ergueu a parte do veu que lhe cobria o rosto, e principiou a descalçar convulsamente uma luva. Suppuz que iria tirar um annel. O cocheiro apressou-se a passar as guias pela grade da almofada e apeou. Tinha-me no emtanto approximado, e no momento em que elle dava o primeiro passo, impellido por uma forte commoção nervosa, estendi-lhe com as costas da mão uma bofetada que o fez cambalear e cair de encontro á parelha. E dando-lhe em seguida uma libra, que trazia no bolso:

— Ahi tem pela bofetada; contente-se com o que lhe deram pela corrida.

Diria que alguem por traz de mim suggerira estas palavras romanticas, a tal ponto ainda hoje pasmo de as ter eu mesmo inventado como solução d’effeito oratorio, para similhante contingencia!

O cocheiro levantou a moeda, examinou-a á luz da lanterna, subiu outra vez á almofada, e partiu dizendo-me:

— Boa noite, meu amo!

Eu, atarantado, confuso, tirei machinalmente o chapeu,