Página:O Mysterio da Estrada de Cintra (1894).pdf/192

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vida dá então um encanto extranho áqueles momentos de mysterio. Mas a perpetuidade do mysterio deve ser egual áquella legendaria tortura da beatitude eterna! Quando dois entes se encontram pelas fataes condições do seu procedimento, obrigados a viverem um do outro, um para o outro, um eternamente no segredo do outro, quando isto se não passa na ilha de Robinson, nem entre dois discipulos de Sedwinborg, nem entre dois desgraçados cheios de fome — mas n’uma cidade ruidosa e viva, entre duas pessoas positivas e educadas pelo segundo imperio, e que têem as complacencias do luxo, crê que deve ser amargo.

E depois, pensa! A nossa vida arrastar-se-ha tristemente, de paiz em paiz, sem um centro amado, sem uma familia, sem um fim. Não teremos, nem durante a existencia, nem no grave momento da morte, a serenidade de quem é justo. A nossa vida será como a das sombras romanticas de Paulo e Francesca de Rimini, levadas pelo vento contradictorio. Morreremos emfim como dois seres estereis, que nada crearam, e que não têem quem fique na terra com a herança do seu caracter; e quando todos pelos seus filhos ganham a unica justa immortalidade, nós sómente seremos mortaes, e para nós mais que para ninguem será terrivel a lembrança do fim! Perdôa que te escreva estas cousas. Mas fiz o meu dever. E agora posso livremente, insuspeitamente, dizer-te que me sinto feliz, e que o momento d’amanhã, quando virmos desapparecer a terra e nos acharmos sós, no infinito mar, — será para mim tão bello, que só por elle julgarei justificada a minha vida.»

Quando acabei de lêr esta carta, sentei-me machinalmente deante das malas, com os olhos fixos, como idiota. Abri uma gaveta, tirei não me recordo que pequeno objecto de renda, e tornei a fechar, com um movimento automatico, lugubre, e a ausencia absoluta da consciencia e da vida. Chamei Betty:

— Betty, que horas são?

— Onze, minha senhora.

— Dá-me agua, tenho sede. Dá-me agua com limão...

Quando ella sahiu fui encostar a cabeça á vidraça, a olhar o movimento ondeado e lento das ramagens escuras. A lua pareceu-me regelada. Betty entrou.

— Betty, disse-lhe eu n’uma voz sumida, sabes? Tenho medo de morrer doida...

Ella olhou-me, e viu no meu rosto uma tal expressão d’angustia, que me disse:

— Que tem, meu Deus, que tem? Chore, minha rica menina, chore...