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Vim sentar-me á janella do meu quarto: vinha um aroma suave do jardim; o luar, as grandes sombras, tinham um repouso romantico e triste. Lentamente, a minha desgraça começou apparecendo-me inteira, nitida, em pormenores, n’uma grande synthese, como se fosse um mappa.

Eu era trahida! Aos vinte e tres annos, com todas as intelligencias da paixão, com todos os delicados prestigios do luxo, era trahida, era trahida! Senti então pela primeira vez a presença do ciume, esse personagem tão temido, tão cantado nas epopéas, tão arrastado pela rampa do theatro, tão conhecido da policia correccional, tão cruel, tão ridiculo, tão real! Vi-o! Conheci-o! Senti o seu contacto irritante e mordente como um corrosivo; a sua argumentação miuda, jesuitica, implacavel, sanguinaria: todo o seu processo d’acção, que torna de repente o coração mais puro tão immundo como a toca d’uma fera.

Senti o mais cruel dos ciumes todos; aquelle que se define, que diz um nome, que desenha um perfil, que nol-o mostra, o nosso inimigo, que nos enche as mãos d’armas, que nos obriga a avançar para elle. Eu sentia no meu ciume um ponto fixo — ella. Era ella, a outra! Lembrava-me confusamente: tinha cabellos louros, finos, espalhados, uma nuvem de ouro esfiado. Eu tinha-a visto em Paris vestida de roxo na revista de Longchamps. O seu olhar era franco: os homens deviam encontrar n’elle o quer que fosse, que promettia um destino pacifico. Que secreto encanto se irradiaria da esbelta fraqueza do seu corpo? Era a simplicidade? Era a intelligencia? Era a sciencia das cousas do amor?... Como eu ardia por a conhecer! E não sabia nada d’ella senão que era irlandeza, e que se chamava Miss Shorn!

Ah sim, sabia outra cousa — que elle a amava!

Conhecel-a! conhecel-a! Mas como? Podia ser, pelas suas cartas! De certo! Ella devia pôr n’ellas toda a sua intima personalidade. Era loira, era ingleza, por isso raciocinadora: devia escrever pacificamente, sem sobresaltos, e sem inspirações da paixão; nas suas cartas provavelmente desfiava o seu coração. Eu conhecel-a-hia bem, se as lesse! Eu saberia o estado de espirito de Rytmel, a marcha da sua paixão, pelas cartas d’ella. Devia lel-as! Era necessario pedil-as, roubal-as, compral-as, eu sei! Mas era necessario lel-as!

Para pensar assim eu nenhuma prova tinha de que elle recebia cartas d’ella, mas tinha a certeza que ellas existiam e que o seu coração estava cheio d’ellas...