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minha vida, a minha infelicidade insondavel, ou a immensa pacificação do meu futuro! Podia porventura hesitar? — Elle fallava no emtanto. Eu tremia toda. Olhava fixamente para um copo que estava sobre a mesa ao pé d’uma garrafa de crystal da Bohemia. O reposteiro da alcova achava-se corrido; dentro estava escuro.

Betty tinha ido commigo, e ficára n’um quarto distante, que dava para uns terrenos vagos...

— E se houvesse um desastre! pensei eu de repente. Não ha pessoas que succumbiram completamente, cujo adormecimento foi acabar de arrefecer no tumulo?

Mas eu via sempre a saliencia da carteira, que me tentava como uma cousa resplandecente e viva. Podia approximar-me d’elle de repente, enfraquecel-o ao calor das minhas palavras, ir levemente, astuciosamente, arrebatar-lhe a carteira, saltar, correr, atirar-me para o fundo do meu coupé, e fugir. Mas se elle resistisse? Se perdesse a consciencia da sua dignidade e da humilde debilidade do meu ser? Se me sujeitasse violentamente, se me arrancasse outra vez as cartas?

Não podia ser. Era necessario que dormisse tranquillamente! Se as cartas fossem innocentes, simples, inexpressivas como eu ajoelharia depois, ao pé do seu corpo adormecido, como esperaria com uma ancia feliz que elle acordasse! que aurora sublime acharia elle nos meus olhos quando os seus se abrissem! Mas se houvesse nas cartas a culpa, a traição, o abandono?!

Levantei-me. Rytmel tinha ao pé de si um copo com agua. Bebia aos pequenos golos quando fumava. Eu deixava-o fumar. Mas eu não sabia como havia de achar um momento meu, bastante para deitar duas gotas de opio no copo.

Tive um expediente trivial, estupido.

— Rytmel, disse eu, como n’um theatro, como nas comedias de Scribe, com uma voz imbecilmente risonha, — vá dizer a Betty, que póde ir, se quizer. A pobre creatura dormiu pouco, está doente.

Elle saiu; ergui-me. Mas ao approximar-me da mesa, defronte do copo, fiquei hirta, suspensa. Estive assim um tempo infinito, segundos, com a mão convulsa apertando o frasco no bolso. Mas era necessario, eu tinha-o ouvido fallar, voltava, sentia-lhe os passos, ia entrar... Tirei o frasco, e louca, precipitada, mordendo os beiços para não gritar, esvasiei-o no copo.

Elle entrou. Eu deixei-me abater sobre uma cadeira, trémula em suor frio, e, não sei por quê, sentindo uma infinita ternura, disse-lhe sorrindo, e quasi chorando: