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— Ah, como eu sou sua amiga! Sente-se ao pé de mim.

Elle sorriu. E — meu Deus! — approximou-se, creio que sorriu, e tomou o copo! E com o copo na mão:

— E sabe, disse elle, que ninguem o crê mais do que eu!... Se não fosse o teu amor como poderia eu viver?

E conservava o copo erguido. Eu estava como fascinada. Via o reflexo da agua, parecia-me vagamente esverdeada. Via as scintilações do crystal facetado.

Finalmente bebeu!

... Desde esse momento fiquei n’um terror. Se elle morresse? Meu Deus, por que? Não se dá opio ás creanças, aos doentes? não é elle a clemente pacificação das dôres? Não havia perigo. Quando acordasse eu seria tão sua amiga, tão terna com elle, para me absolver d’aquella aventura imprudente! Ainda que seja culpado, amal-o-hei! pensava eu. Pobre d’elle! Não lhe bastava ter de dormir assim forçadamente n’um somno pesado e cruel? Amal-o-hia, culpado. Trahida, amal-o-hia ainda!

Elle entretanto estava calado, no sophá, com a cabeça encostada. De repente pareceu-me vel-o empallidecer, ter uma ancia, sorrir. Não sei o que houve então. Não me lembra se fallámos, se elle adormeceu brandamente, se alguma convulsão o tomou. De nada me lembro.

Achei-me ajoelhada ao pé d’elle. Devia ser meia noite. Estava immovel, deitado no sophá. Tinham passado duas horas. Senti-o frio, via-o livido, não me attrevia a chamar Betty. Dei alguns passos pelo quarto em uma distracção idiota. Cobri-o com uma manta.

— Vae accordar dizia eu machinalmente. Compuz-lhe os cabellos ligeiramente desmanchados. De repente a idéa da morte appareceu-me nitida, e pavorosa. Estava morto! Senti como o fim de todas as cousas. Mas chamei-o, chamei-o brandamente, e com doçura...

— Rytmel! Rytmel!

E andava nos bicos dos pés para o não acordar! Subitamente estaquei, olhei-o ávidamente, precipitei-me sobre o corpo d’elle, envolvi-o, gritando suffocada:

— Rytmel! Rytmel!

Ergui-o: a hallucinação dava-me uma força cruel. A cabeça pendeu-lhe inanimada. Desapertei-lhe a gravata. Amparei-o nos braços, e n’esse momento senti o volume, a saliencia que na sua casaca fazia a carteira. Veiu-me a idéa das cartas. Tudo tinha sido pelo desejo de as lêr. Tirei-lhe a casaca; era difficil; os seus musculos estavam hirtos. Junto com a carteira havia outros papeis e um masso de notas de banco. Ao tomal-os, os papeis e as cartas espalharam-se no