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Tal foi a casa escolhida pela condessa para recolhimento e asylo do resto de seus dias.

O exterior do edificio era mysterioso e lugubre. Cingia-o em toda a sua amplitude uma alta muralha que o disgregava do resto do mundo, cerrando as casas habitadas pelas freiras ao exame de fóra. Era um predio emparedado. A muralha, que media a altura de quatro andares, era da côr da estamenha, sombria e triste, manchada de grandes nodoas esverdeadas e negras como o capuz de um ermita, uma especie de lençol em que se enrolasse para o enterro uma casa morta. Havia um ponto em que esta facha se recolhia, formando o pateo por onde se entrava para o convento, cuja porta, mordida pelos annos, chapeada e cravejada com enormes pregos, se via no fundo atravez dos grossos varões de uma grade de ferro. Pelas juntas desarticuladas das grandes pedras que lageavam o pateo, rompiam moitas de ortigas, com a rudeza de cabellos hirsutos, sahidos pelos rasgões de um barrete. Do meio do largo surgia o bocal da um poço, cujo balde seguro por uma corda de esparto pendia de uma estaca. No chão estavam estendidos os andrajos das pobres da visinhança, que vinham laval-os ao pé do poço, e n’esse recinto os deixavam a enxugar juntamente com as enxergas dilaceradas e apodrecidas dos berços dos seus pequenos. A um canto do pateo pendia do muro uma corrente de ferro com que se tangia uma sineta interior. A este signal via-se n’uma abertura da alvenaria rodar no muro um cylindro de madeira, que por um movimento vagaroso mettia para dentro a sua superficie concava e mostrava para fóra o seu interior convexo. Parecia quando isto se ouvia que o taciturno monstro entreabria a palpebra, deixando vêr uma orbita sem olho. Este apparelho chamma-se a roda. A condessa pronunciou ahi uma palavra, a que respondeu de dentro uma especie de gemido, e foi esperar em seguida para junto da porta negra ao fundo do pateo.

Quando a porta se abriu e o primo da condessa lhe apertou pela ultima vez a mão, as lagrimas, que até ahi conseguira difficultosamente reprimir, saltaram-lhe dos olhos.

— Acha horrivel, não é verdade? perguntou-lhe ella com um sorriso em que transparecia a extranha luz da resignação das martyres antigas. Que queria que eu fizesse, meu querido amigo? Matar-me? Prostituir-me á convivencia da sociedade? Não posso. Falta-me o valor para sacrificar ao meu infortunio a salvação da minha alma, e escuso de dizer-lhe que me falta igualmente a intrepidez precisa para sacrificar ao socego ordinario da vida o pudôr do meu coração.