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que o dia desvanece e apaga; ha outros que só surgem ao clarão do sol.

Eu sentia no cerebro uma multidão de idéas extremunhadas, que á luz repentina da madrugada voejavam em turbilhão como um bando de pombas amedrontadas pelo estridor de um tiro.

Machinalmente entrei na alcova, sentei-me na cama, encostei um braço no travesseiro.

Então, não sei como, olhei, reparei, vi, com extranha commoção, sobre a alvura do travesseiro, preso n’um botão de madreperola, um longo cabello louro, um cabello de mulher.

Não me atrevi logo a tocar-lhe. Puz-me a contemplal-o, avida e longamente.

— Era então certo! ahi estás pois! encontro-te finalmente!... Pobre cabello! apieda-me a simplicidade innocente com que te ficaste ahi, patente, descuidado, preguiçoso, languido! Pódes ter maldade, pódes ter malvadez, mas não tens malicia, não tens astucia. Tenho-te nas mãos, fito-te com os meus olhos; não foges, não estremeces, não córas; dás-te, consentes-te, facilitas-te, meiga, doce, confiadamente... E, no emtanto, tenue, exigua, quasi microscopica, és uma parte da mulher que eu adivinhava, que eu antevia, que eu procuro! É ella auctora do crime? é inteiramente innocente? é apenas cumplice? Não sei, nem tu m’o poderás dizer?

De repente, tendo continuado a considerar o cabello, por um processo de espírito inexplicavel, pareceu-me reconhecer de subito aquelle fio louro, reconhecel-o em tudo: na sua côr, na sua nuance especial, no seu aspecto! Lembrou-me, appareceu-me então a mulher a quem aquelle cabello pertencia! Mas quando o nome d’ella me veio insensivelmente aos labios,disse commigo:

— Ora! por um cabello! que loucura!

E não pude deixar de rir.

Esta carta vae já demasiadamente longa. Continuarei ámanhã.

VII

 

Contei-lhe hontem como inesperadamente havia encontrado á cabeceira da cama um cabello louro.

Prolongou-se a minha dolorosa surpreza. Aquelle cabello luminoso, languidamente enrolado, quasi casto, era o indicio