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O reino de Kiato
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Pantaleão duvidou do que via dentro de si. Era tudo um pesadelo. Bem podia ser que ainda estivesse bebado!...

Comprehendeu a rainha que elle queria crer, mas hesitava. Pediu-lhe que a acompanhasse á camara ardente. O cadaver era a prova material do crime.

A lembrança do assassinato foi-se-lhe avivando e minutos depois aquelle espirito meio embrutecido pelo vicio era esmagado pela verdade. Acabrunhado, recolheu-se o rei aos seus aposentos. Só tinha socego quando dormia. O seu despertar era todos os dias o despertar do afflicto, uma angustia cruciante. O primeiro pensamento que lhe acudia ao cerebro era o assassinato da filha. E a tortura continuava até á noite, quando, vencido pelo cançaço, já a deshoras cahia num lethargo doentio. Assim foi semanas inteiras. Causava dó sua figura. A tortura lhe havia macerado as feições, apagado o brilho dos olhos e, para completar a hediondez do rosto, a cabelleira e a barba hirsutas, que os dias de dor tinham embranquecido, emmolduravam-lhe o facies livido, macilento como o de um morto.

Fizeram-se funeraes com toda a pompa, consoante á posição da extincta e ao sabor dos preconceitos da sociedade de então; mas, nelles, o rei não tomou parte. Segregou-se e segregado esteve, mesmo da propria familia, até ao dia em que se sentiu regenerado, purificado pelo remorso. A dor havia resgatado o seu crime. Revivia, sahia da vasa immunda dos vícios em que se achava atolado havia muitos annos...

Estava salvo, Cumpria-lhe salvar o povo. Era preciso aniquilar o factor de sua desgraça, da desgraça do genero humano — o alcool. Era-lhe preciso uma coragem sobrehumana, um valor de super-homem, para vencer tão grande inimigo.